Em artigo de agosto sobre as eleições nos EUA, minha conclusão era: “Provavelmente, o mundo não fica melhor com Kamala, mas seguramente fica pior com Trump.” Com o resultado eleitoral nos Estados Unidos na semana passada, aparentemente as coisas vão ficar piores, e rapidamente.

Antes de tudo, vale observar que o eleitorado dos EUA parece ter votado com o bolso, preocupado com os preços em níveis elevados (a inflação parou de subir, mas os preços não baixaram durante o governo Biden) e a renda da maioria da população não subiu.

Mais do que isso, muita gente não foi votar, afastando-se das urnas por diversos motivos. Em 2020, os dois principais candidatos, Biden e Trump, tiveram cerca de 155,5 milhões de votos. Em 2024, os dois principais candidatos, Trump e Kamala, tiveram cerca de 146,9 milhões de votos – ou seja, a votação caiu bastante, e vale lembrar que as eleições anteriores aconteceram no ano da pandemia. Trump aumentou sua votação em pouco menos de um milhão de votos (teve 75,1 milhões de votos). Os democratas recuaram em mais de nove milhões de votos (Kamala teve 71,8 milhões). Pela primeira vez nas últimas eleições, os republicanos tiveram a maioria dos votos totais (quando Trump ganhou de Hillary Clinton, os republicanos ganharam no colégio eleitoral, mas tiveram menos votos totais que os democratas). Trump ganhou em todos os chamados “estados pêndulos”, aqueles que decidem a eleição por terem as eleições mais divididas entre os dois principais candidatos. Além disso, Trump ganhou a maioria dos governos estaduais, terá maioria no Senado, maioria na Câmara. E já tinha maioria na Suprema Corte. Politicamente, uma vitória bem expressiva, que o sanciona como “dono” do Partido Republicano.

Feita essa breve passada sobre o processo eleitoral, e levando em consideração o poder sedimentado que terá Trump (o velho sistema de pesos e contrapesos tradicional da política estadunidense está bem relativizado nesse momento), vamos ver o que justificaria a afirmativa de que o mundo não fica melhor com Trump, longe disso – em que pese a velha concepção assentada de que existe de fato pouca diferença entre democratas e republicanos no poder nos EUA.

O primeiro ponto diz respeito à questão do protecionismo. Trump afirmou na sua campanha que parte da estratégia para “fazer a América grande de novo” (“Make America Great Again”, conhecida nos EUA pelo acrônimo MAGA) está no protecionismo tarifário. A elevação de tarifas de importação de forma unilateral (bye, bye, Organização Mundial do Comércio) é instrumento tanto para proteger setores industriais mais arcaicos e menos competitivos nos EUA, como é parte da estratégia de confrontação com a China (no caso da China, as tarifas sobem muito mais). Isso evidentemente terá impacto tanto nos preços dos produtos dentro dos EUA, como na competitividade das cadeias de produção e valor das empresas estadunidenses. Trump parece querer pagar esse preço, para “fidelizar” para os republicanos o voto dos velhos cinturões industriais antes fiéis aos democratas. Isso pode ter efeitos devastadores para o comércio mundial, especialmente para países que apostaram fortemente em um comércio mundial liberalizado sob administração multilateral.

O ponto seguinte diz respeito à questão da subida dos juros. Trump já está comprando uma briga antecipada com o banco central dos EUA, o Fed. Porque o Fed já antecipou que não será um instrumento da política do governo federal nos EUA, e a reação natural a um aumento da inflação será a subida das taxas de juros. A subida das taxas de juros, além de comprometer a possibilidade de crescimento e afetar negativamente os endividados (que cresceram nos EUA), fortalece o dólar estadunidense, o que é importante do ponto de vista do reforço à hegemonia do dólar no mundo, mas dramático no sentido da competitividade dos produtos produzidos nos EUA, em relação a seus potenciais rivais importados. Isso poderá levar a uma subida de tom da guerra comercial já prevista com o aumento de tarifas de importação.

Um terceiro ponto diz respeito ao comportamento no cenário internacional. Trump em seu primeiro governo fez movimentos surpreendentes e considerados erráticos no cenário internacional. Nenhuma previsibilidade, nenhuma concertação com os aliados, conflitos no interior da própria OTAN, a aliança militar liderada pelos EUA. Promete repetir a dose. Mais do que isso, normalmente se relaciona com seus parceiros políticos nos diversos países, mais do que com as efetivas autoridades dos Estados nacionais existentes. E com pouco apreço a princípios democráticos. É possível que retorne com isso, o que vai tensionar a institucionalidade mundial. Em especial, torna desconfortável a vida de seus parceiros europeus, com quem às vezes parece pouco preocupado. E, em relação à América Latina, privilegia uma visão da política interna dos EUA, ou seja, organiza o Departamento de Estado a partir da cabeça conservadora do eleitorado latino da Flórida, de migrantes bastante conservadores e revanchistas. Cuba e Venezuela que se cuidem.

Das promessas impactantes de campanha deriva uma preocupação obsessiva com a questão dos imigrantes. País de imigrantes desde a sua origem, o novo governo agora fala de deportações em massa, o que pode ter dramáticos efeitos do ponto de vista dos direitos humanos (separação de famílias, condenação a situações perigosas de migrantes por conflitos políticos, e outros problemas), do ponto de vista diplomático com os países de origem dos imigrantes (que, muitas vezes, respondem com o envio de dinheiro por parte importante da receita de moeda forte no balanço de pagamento de vários países) e, se feito realmente em massa, efeitos agudos sobre alguns setores importantes do mercado de trabalho nos EUA, como comércio, serviços e, em alguns estados, na agricultura. Problemas já anunciados na campanha.

Um último ponto que queria ressaltar é a agenda trumpista a respeito de meio ambiente e transição energética. Aqui, a posição trumpista é normalmente de um evidente negacionismo dos problemas climáticos, muitas vezes desconhecendo evidências científicas do problema das mudanças climáticas, e um reforço à política de exploração de combustíveis fósseis. Além dos efeitos ambientais, é preciso tomar em consideração que parte do trilionário programa de reconversão industrial dos EUA levado adiante no governo Biden tem como eixo a transição energética. É possível dar um cavalo de pau nesse volume de investimentos previstos? E, mais importante, qual o impacto de fazer isso do ponto de vista ambiental? Vale observar que, em seu governo anterior, Trump retirou os EUA dos acordos climáticos internacionais, como o Acordo de Paris, e não se preocupou muito com os impactos futuros de sua ação. É provável a repetição da ação, com evidentes impactos negativos sobre o clima do mundo.

Para um país como o Brasil, todos esses pontos representam impactos negativos importantes, e que deverão ser considerados pelo governo brasileiro. E, vale sempre lembrar, esses são só alguns dos pontos complicados esperados do novo governo estadunidense – muito mais coisa perigosa pode ser pensada…

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Trump e o novo espírito do povo na democracia liberal“, de Tarso Genro.