Uma das marcas do Governo Trump nos EUA tem sido uma política permanente de esgarçamento das estruturas multilaterais construídas ao longo de décadas, na maior parte do tempo sob hegemonia dos EUA, e muitas vezes desenhadas por eles próprios. Talvez os exemplos mais evidentes sejam as instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, estruturados na Conferência de Bretton Woods, pequena cidadezinha nos EUA, em 1944, antes mesmo do fim da Segunda Guerra. Não por acaso estão sediadas em Washington DC, nos próprios EUA, pois foram construídas num período em que a hegemonia estadunidense, ao menos entre os países capitalistas, era evidente e a Europa estava em ruínas.
O caso da Organização Mundial do Comércio (OMC) é muito parecido. Foi criada em 1994 e colocada em funcionamento em 1995, com o encerramento da chamada Rodada Uruguai do GATT, iniciada em 1986, mas que só foi concluída após a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da antiga União Soviética. Talvez neste período se possa dizer que prevalecia o unilateralismo estadunidense. Ou seja, instituições desenhadas e colocadas para funcionar sob a hegemonia dos EUA. Umas mais, outras menos. Nos últimos anos, Donald Trump as relegou a papéis subalternos, pois preferiu as negociações diretas dos EUA com o resto do mundo.
Nesse momento atual, seguinte ao processo eleitoral dos EUA, mas no qual Trump ainda não reconheceu formalmente a derrota, o mundo faz elucubrações sobre o que pode ocorrer a partir das mudanças de comando nas terras estadunidenses. O comportamento do atual presidente foge aos padrões normais e ainda não está muito claro o que vai acontecer nos próximos dois meses. O presidente eleito deverá fazer o juramento e tomar posse no próximo dia 20 de janeiro de 2021.
Em qualquer situação, ele tomará posse com um país eleitoralmente dividido e radicalizado, com um Congresso (Câmara e Senado) dividido, com um grande setor do país sem muita vontade de fazer concessões. Além disso, deverá administrar uma pandemia que retoma vigor nos EUA e no mundo, o que exigirá medidas e utilização de recursos (financeiros, mas também administrativos, políticos, de conhecimento e outros) de forma massiva, e que nem se sabe estarem disponíveis.
Além disso, existe um cenário de disputa por hegemonia no plano internacional, envolvendo uma complicada relação entre os EUA e a China, que combina conflitos e dependências em vários setores, e na qual os chineses vêm levando vantagem em muitas áreas, se aproveitando exatamente das fraturas existentes nos próprios EUA, que impedem a consolidação de um projeto nacional. Dessa forma, fica complicado para os EUA utilizarem nessa disputa as vantagens financeira e militar que ainda detém, além dos recursos de poder no nível internacional, muitos dos quais desperdiçados pela estratégia unilateralista de Trump.
No caso dos EUA, as promessas de campanha de Biden podem se mostrar de difícil realização. Em alguns campos, como o de comércio internacional, por exemplo, pode ser complicado combinar estratégias que ao mesmo tempo reforcem o multilateralismo da OMC e ressuscitem a participação dos EUA em iniciativas plurilaterais – como a Parceria Trans-Pacífica, conhecida pela sigla em inglês TPP (articulação de uma grande área de livre-comércio envolvendo países da borda do Pacífico da América do Norte, Ásia, Oceania e América do Sul) – com a defesa da garantia do emprego em setores industriais tradicionais nos EUA que necessitam de medidas protecionistas e subsídios.
A esse respeito, vale lembrar que a virada de votos, obtendo maioria em estados conhecidos nos EUA como “cinturão da ferrugem”, pelo fechamento ou esvaziamento de velhas fábricas, se mostrou fundamental para a vitória de Biden. Pura e simplesmente abandonar esses setores na defesa do multilateralismo pode significar traição para o eleitorado desses estados, o que terá custos. Custos em votos no futuro, custos em votos nas duas casas de um Congresso extremamente dividido, e eventualmente custo em um Partido Democrata em disputa, no qual o setor mais progressista, mobilizado por Bernie Sanders e outros e outras recentemente eleitos/as ou reeleitos/as e fortalecidos/as. Os “as” não são figura de retórica ou preocupação com um tratamento equânime de gênero, em muitos casos a referência é direta a novas famosas deputadas estrelas do Partido Democrata.
Enfim, desde o conturbado período pós-eleitoral pelo qual estamos passando, sem o reconhecimento até aqui por parte de Trump dos resultados das eleições presidenciais, até as “abóboras” se ajeitarem na carroça por essa estrada esburacada desenhada para o novo Governo Biden, os tempos não serão fáceis. O tema de como voltar ao multilateralismo nas relações externas é apenas mais um dos temas complicados para o novo governo estadunidense.