
Os ex-presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín
Sob o novo governo de Joe Biden, os EUA podem ter dificuldades para voltar com tudo ao multilateralismo. De qualquer maneira, trata-se da maior economia do mundo, que além de ser o centro financeiro global e de ter a hegemonia sobre o sistema multilateral construído, também possui o poder militar.
A ideia aqui é levantar alguns pontos sobre a situação do Brasil nessa nova conjuntura em que os americanos irão tentar reativar o funcionamento multilateral do sistema mundial. O Brasil não entra bem neste novo cenário. Por quase dois anos tentou as negociações bilaterais, que não tiveram muita eficácia, salvo, talvez, com o Paraguai. Além disso, tem um ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo que disse não ver problemas se a atuação diplomática recente do Brasil “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, discursou na formatura de novos diplomatas no fim de outubro desse ano.
O Brasil começou uma suave mudança de rumo depois de 2020. Não cabe aqui analisar o processo eleitoral de 2020, mas apontar que seus resultados não parecem dar um norte na política do país. Os setores progressistas saíram divididos e sem hegemonia clara do processo, o “centro”, esse eufemismo brasileiro para uma parte do conservadorismo econômico e político, também saiu dividido e sem hegemonia clara. A direita mais assumida, que hegemoniza o atual governo e lhe dá parte do apoio congressual, saiu escaldada por uma derrota clara, em especial nos grandes centros urbanos, como se viu em especial no segundo turno eleitoral. Esse contexto resumido serve para destacar três aspectos.
O primeiro é que os próximos meses não serão fáceis no parlamento, o qual ainda não discutiu o orçamento para 2021, que já deveria estar quase finalizado. A segunda grande questão nacional, das mais importantes, envolve uma série de assuntos bem complexos: o pacto federativo (e apoio a estados e municípios), o “teto de gastos” e a política de rendas (por exemplo, o auxílio emergencial, não só como uma garantia para a sobrevivência dos mais pobres, mas também como eleitores decisivos em 2022). Estes assuntos terão de ser decididos nesse quadro confuso.
Uma terceira complicação é a questão da sucessão presidencial, que já começou nas eleições locais de 2020. Os resultados eleitorais indicam que o governo Bolsonaro, tal qual o conhecemos até aqui, se esgotou. E isso, em um quadro em que a pandemia da Covid-19 está recrudescendo.
O jogo de xadrez está em curso. A política interna torna muito difícil uma inflexão na política externa, embora muito necessária. Para sentir a dificuldade, a inflexão começa mais claramente com uma reunião entre os presidentes de Brasil e Argentina, e seus responsáveis por Relações Exteriores, no dia seguinte ao segundo turno eleitoral no Brasil, em 30 de novembro último.
Bolsonaro e Fernández não haviam se reunido até aqui, e a conversa virtual entre os dois pode ser considerada dos raros acertos da diplomacia recente: começar a conversa pelo vizinho mais importante, principal parceiro na construção do Mercosul, parceiro comercial relevante (em especial para a indústria brasileira), membro com quem o Brasil tradicionalmente se articula no G-20, e com quem a agenda de problemas só vinha encorpando até aqui. Ou seja, uma agenda que transitava de temas bilaterais a temas multilaterais com facilidades. Além disso, países sob efeitos fortes, sanitários e econômicos da pandemia internacional, e que portanto, teriam convergências importantes.
Mas por aí começaram também a se revelar as dificuldades da conversa. O comunicado do governo argentino logo após a reunião colocou ênfase na questão ambiental, o país vizinho expressou na nota suas preocupações com a chamada “agenda ambiental brasileira”, se manifestando a respeito de um tema sensível para o Brasil, sobre o qual o governo Bolsonaro tem sido pressionado internacionalmente, o que inclusive, deve aumentar com a posse do novo governo dos EUA.
Por outro lado, a ênfase do governo brasileiro parece ter sido sobre os temas comerciais e mudanças na tarifa externa comum do Mercosul. Tal tema é absolutamente sensível para uma Argentina envolvida em grave crise econômica, sem poder dar muitas facilidades nem mesmo para a entrada de produtos brasileiros no país. Com uma base política diversa, enfrenta enormes dificuldades em ceder espaços para a ampliação de acordos comerciais com o Brasil negociados fora do esquema Mercosul, o que não só debilita o bloco, como amplia a concorrência de outros países com os produtos argentinos.
Ou seja, a volta do multilateralismo não parece fácil nem mesmo aqui perto, como se pode ver a partir dessa reunião em que ambos os países comemoravam 35 anos do encontro entre os presidentes Sarney e Alfonsín – um marco na abertura de espaço político para o processo de integração econômica e para a resolução de pendências entre Brasil e Argentina.
O autor publicou recentemente outro artigo sobre o tema: https://terapiapolitica.com.br/2020/11/13/a-volta-do-multilateralismo/