Nas últimas semanas, nesse enorme e belo país tropical, assistimos em todos os canais de TV, no YouTube, Instagram e até naqueles streams que desconheço, aos depoimentos de convidados à Comissão de Inquérito Parlamentar, comissão que investiga o comportamento de figuras centrais do governo durante a pandemia da Covid-19, a chamada CPI da Covid.
A pandemia da Covid-19 não acabou, não vamos nos enganar. Mas, paralelamente ao seu avanço, acionaram-se os mecanismos institucionais para que fossem apuradas as responsabilidades que fizeram deste país um dos países no mundo onde o coronavírus tem provocado mais vítimas. Ainda não acabou – e já são mais de 480 mil pessoas vítimas fatais da infecção. Dores negadas, corpos hermeticamente fechados em sacos pretos de plástico, enterros sem velório, perdas sem despedida vão se acumulando.
Os números se mantêm num patamar de aproximadamente 1.800 vidas perdidas por dia, com variações. No dia 1 de abril desse ano, chegaram a ser perto de 4.000 pessoas mortas pela Covid-19 num dia só. Desde que se instaurou a CPI da Covid, temos assistido a 11 senadores inquirindo ou apoiando depoimentos de convocados, testemunhas e convidados que tiveram ou ainda têm responsabilidade sobre as políticas aplicadas ou omitidas para conter o avanço da doença.
Além das mortes e UTIs lotadas, há filas de infectados que em alguns casos chegam a ser mais de 2.000 pessoas aguardando um lugar na UTI. Também falta oxigênio nos centros hospitalares, e as pessoas morrem asfixiadas nas portas dos hospitais, ou dentro destes, enquanto familiares correm desesperados tentando comprar os galões que aparecem tarde demais. Para piorar a situação, faltam medicamentos sedativos. As pessoas que são entubadas para poder sobreviver à doença têm que suportar a dor do procedimento sem analgésicos, anestésicos ou algum tipo de medicamento que diminua o sofrimento.
Enquanto isso, vários convocados e convocadas depõem e respondem as questões da CPI da Covid. São eles ex-ministros da saúde ou o ministro atual, secretários e secretárias com responsabilidades diretas sobre a distribuição de medicamentos e implementação de políticas específicas de saúde, o ex-ministro de relações exteriores encarregado de atrapalhar qualquer tipo de negociação para a obtenção de vacinas, CEOs de empresas farmacêuticas produtoras de vacinas, autoridades de agências reguladoras em saúde, médicas, consultoras, generais, etc. Várias figuras do governo e das empresas envolvidas têm prestado depoimento. Todas elas tentam delimitar o seu campo de ação e se eximir de responsabilidades. Mas aqueles que têm tido responsabilidade direta no aprofundamento da infecção ajudando o vírus a se reproduzir e levando as pessoas a adoecerem até a morte, chamam a atenção pela tranquilidade e frieza dos seus depoimentos.
Cada vez que essas pessoas, homens e mulheres que atuam ou atuaram junto do líder de governo que promove comportamentos de aglomeração, critica o uso de máscara e defende a prática chamada de “imunidade de rebanho”, depõem na comissão, produzem calafrios e espanto. Dita imunidade supõe a possibilidade de imunização em relação ao vírus por exposição à infecção, o que comprovadamente levaria a um número de vítimas excessivo por ultrapassar todas as capacidades de qualquer sistema hospitalar. Essa prática, embora tentada em alguns países logo no início da pandemia, foi descartada por ser impraticável e desumana. Nos lugares onde se ousou iniciar estratégia semelhante, a mortalidade e saturação do sistema médico foi tal, que a tese teve que ser abandonada. No entanto, nesse imenso país continental, os integrantes do governo logo aderiram a esta estratégia. Hoje, tanto na prática como no discurso, vários membros do governo a promovem ativamente, tendo como principal incentivador o próprio presidente da república.
O que a CPI tenta agora é demonstrar que as políticas desenvolvidas têm produzido descontrole da doença, disseminação do vírus e aumento da mortalidade. Mortes, que poderiam ser evitadas com simples medidas comportamentais, têm sido incrementadas pelo estímulo a comportamentos de disseminação da infecção. Além da promoção de aglomerações sem máscara e sem distanciamento, um dos instrumentos defendidos pelo governo central desde o início da pandemia até agora é o uso de medicamentos sem eficácia científica comprovada para evitar a infecção e morte das pessoas.
No entanto, um dos depoimentos que mais me chamou a atenção foi o da médica “consultora” do governo, principal defensora da aplicação deste tratamento sem eficácia comprovada. Ela, convidada pela comissão, esteve durante mais de oito horas quase ininterruptas, prestando depoimento e defendendo, com voz impávida, suave e monocórdia, o uso desses medicamentos e a estratégia de imunidade de rebanho por infecção. Amparada em diversos títulos e na autoridade de sua trajetória profissional, defendeu impávida, sem sair do seu tom de voz nem por um segundo, a continuidade destas práticas que já levou a esse escandaloso número de mortes.
O que mais surpreende na doutora, é que por detrás da máscara, seus olhos apenas pestanejam. Sua postura corporal estática, apesar de acompanhada pelo movimento expansivo das suas mãos, é um marco de algum tipo de postura estética que se pretende ética. Vestida de branco, com um colar de contas de madrepérola e um anel no qual se vislumbra um enorme cristal, quase do tamanho da sua pequena mão, tenta incorporar uma aura de pureza e luminosidade. Assim como o fazem os gurus de algumas seitas religiosas, sua pretensa aparência pacífica oculta uma verdade escura e mortífera. Sim, com voz suave e incomovível, a doutora defende a morte.
Seus argumentos se esvaem frente a questionamentos assertivos de alguns senadores que são médicos ou que apresentam informações revelando a falsidade das suas fontes ou a solidez do seu conhecimento. Ela se pretende cientista, quase uma deusa da teoria da imunização. Mesmo caindo em contradição, ficando sem resposta frente a argumentos científicos fundamentados, ela continua, maquinalmente, sem sensação aparente. Por detrás do anel, das mangas do seu casaco branco folgado, deixam-se ver umas manchas avermelhadas na pele. Eu me pergunto se serão fruto de uma doença, talvez sequelas de coronavírus, ou se serão parte de algum ritual de autoflagelação que seja capaz de expiar a culpa. Mas não, não há culpas nessa voz, nessa postura messiânica, nesse aparente encontro com seres de luz. A luz que está por trás dessa personagem é a luz das trevas, a escuridão que carrega a dor e o sofrimento de milhares de mortes por Covid-19 neste belo país continental.
Qualquer semelhança com a realidade não é coincidência…
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