A viagem recente do presidente Lula pela Espanha trouxe de volta às páginas da grande imprensa o tema do fechamento do Acordo Mercosul-UE, cujas negociações se arrastam há mais de 25 anos.
Formalmente, o Acordo de Associação Birregional Mercosul-União Europeia tem três capítulos básicos: diálogo político, livre comércio e cooperação. Na prática, o que se discute é livre comércio, como se nesse mundo conturbado da terceira década do Século XXI diálogo político e cooperação entre os países fossem temas menos importantes. Mais do que isso, para facilitar o acordo de comércio, a União Europeia chega a sugerir separar os capítulos que foram negociados em conjunto (ou seja, é possível que um país tenha feito concessões, por exemplo, em comércio, em troca de ganhos, por exemplo, em cooperação), aprovando o texto de comércio (que pode ser aprovado pela Comissão Europeia) e colocando para o futuro os temas de diálogo político e cooperação, que têm que ser aprovados pelos diversos parlamentos nacionais dos países que compõem a União Europeia.
Mesmo o capítulo de liberalização comercial do acordo só teve suas negociações fechadas em 2019 sob os governos Macri na Argentina e Bolsonaro no Brasil, mostrando que só uma profissão de fé liberal pode aceitar os termos do acordo. No fundo, na essência, esses termos remontam ao pacto colonial: o Mercosul se especializa em fornecer produtos agrícolas, pecuários e extrativos (minérios e energia) para a União Europeia, em troca de abrir seus mercados de produtos industriais e serviços para a União Europeia. Além do mais, faz uma série de concessões em outros temas, como compras públicas e investimentos, por exemplo, que podem ser parte de uma nova e efetiva estratégia de desenvolvimento no Mercosul. Enfim, o Mercosul sanciona no presente uma relação desigual e na prática abre mão de instrumentos que poderiam alterar essa desigualdade no futuro.
O acordo que, como dito antes, teve sua negociação fechada em 2019 estaria em uma fase de adequações e preparação para ser votado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais no Mercosul e nos países da União Europeia. Na prática, de forma escamoteada (afinal, as “negociações” terminaram) segue sendo negociado. Isso porque após o fechamento das negociações, em 2019, os europeus (em particular a sociedade europeia que, através de suas organizações, pressionou os governos nacionais e seus representantes no Parlamento Europeu) ficaram assustados com o grau de estrago ambiental do governo Bolsonaro. Com isso, resolveram “reabrir” a conversa sem dizer que estavam reabrindo as negociações, tentando emplacar um protocolo adicional (chamado no jargão das conversas de “side letter”) expressando alguns compromissos e exigências ambientais. Ao mesmo tempo, esperavam a conclusão do processo eleitoral brasileiro, pois era muito complicado para a União Europeia firmar um acordo com um governo como o de Bolsonaro, com poucos compromissos democráticos e ambientais.
O problema é que, de fato, a negociação em torno do tal protocolo adicional reabre as negociações, pois os países do Mercosul não apenas se sentem ameaçados por um certo protecionismo agrícola disfarçado que poderia advir dos compromissos adicionais previstos no protocolo, como resolveram aproveitar para, em uma nova conjuntura na região, reabrir a discussão possível de novas estratégias de desenvolvimento, revendo, por exemplo, itens relativos ao capítulo de compras públicas.
O fato é que o acordo que teve sua negociação encerrada é um acordo profundamente desigual e desequilibrado, em que os países do Mercosul cristalizam sua estrutura produtiva de exportadores de commodities agropecuárias, minerais e energéticas, e cedem seus mercados (expressivos, quando se pensa por exemplo em economias como Brasil e Argentina) aos produtores da União Europeia. Mais do que isso, o acordo teve suas negociações encerradas em 2019, portanto antes da pandemia da Covid-19 e da Guerra da Ucrânia. Ou seja, em uma conjuntura internacional bastante diferenciada da atual – só essas últimas mudanças já seriam suficientes para rever o acordo. Muito mais, é um acordo desenhado no furor da liberalização comercial da segunda metade dos anos 1990, marcados pela criação da Organização Mundial do Comércio e sua agenda maximalista de liberalização, assim como de conversas sobre a criação de uma área de livre-comércio das Américas, a tal ALCA, cujo fracasso só ficou evidente em 2003/2004 frente aos novos governos que assumiram na América do Sul no início do novo século. O mundo é outro, e isso já poderia servir de base para novas conversas.
Mais ainda com governos na América do Sul que dizem buscar novos rumos para o desenvolvimento, trabalhando no sentido da reindustrialização. Sabemos que em países como o Brasil, o dinamismo do setor primário da economia não é capaz de gerar capacidade de alavancar renda e emprego para uma população de mais de 200 milhões de habitantes. Ao contrário, o setor primário, seja a agropecuária, seja a mineração, é altamente concentrador – de renda, riqueza e poder. Uma nova estratégia de desenvolvimento supõe escapar da armadilha da “primarização”, de uma integração regressiva no mercado mundial. É isso o que está em jogo.
Portanto, não se trata de rejeitar a conversa com a União Europeia, fundamental para um país que quer reforçar o multilateralismo no mundo. Trata-se de buscar fazer essa conversa e uma negociação em outras bases, que permitam ao Brasil e ao Mercosul uma estratégia de desenvolvimento com distribuição de renda, riqueza e poder em nossas sociedades. E isso o acordo que foi negociado até 2019 não pode nos dar, nem com protocolos adicionais.
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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