O Brasil vivencia uma das maiores crises da sua história. Aos problemas de saúde pública acarretados pela pandemia da Covid-19, soma-se uma crise política e econômica que se estende por pelo menos cinco anos. Saber as raízes desta crise importa, não tanto pelo conhecimento arqueológico do passado, mas principalmente pela sinalização de encontrarmos a saída para o impasse que assola o País.

É amplamente difundido na opinião pública, que o ‘PT teria quebrado o Brasil’, e que para recolocar o país nos trilhos do crescimento sustentável seria necessário aprofundar as tais reformas estruturais. É importante lembrar, contudo, que a expressão o país ‘quebrou’ é indevida porque esse termo é usado na literatura econômica para explicar insolvência externa, crise financeira e/ou problema na rolagem da dívida interna, o que não ocorreu nesse período. Pelo contrário, a dívida externa se encontrava em um patamar inferior às reservas internacionais e a dívida interna deixou de ter parcela importante atrelada ao dólar e o sistema financeiro se manteve saudável (dívida interna em relação ao PIB se aproximava dos 60% e em 2013 estava em 30,5% do PIB).

Não obstante, a necessidade de explicar a origem da crise econômica atual e das responsabilidades da gestão petista ainda persiste, já que ambas coincidem no tempo. Um amplo leque de explicações tem sido empregado. Da nossa parte elencamos cinco fatores. São eles:

1) Administração Macroeconômica e impacto alocativo

Vale ressaltar que estamos em desacordo com a ênfase dada pela ortodoxia de que a causa da crise seria decorrente do excesso de intervenção do Estado. Essa crítica elenca um amplo conjunto de medidas de política econômica, incluindo desde o subsídio à renovação da frota de transporte rodoviário à política de “campeões nacionais” do BNDES, cujo resultado teria sido a distorção dos mecanismos alocativos de mercado e aumento do déficit público. Do nosso ponto de vista, algumas políticas de intervenção tiveram, de fato, efeito negativo, mas com impacto superdimensionado pelos ortodoxos. Dos pontos abaixo, os cinco primeiros tiveram impacto fiscal, mas sem elevar substancialmente o ritmo de crescimento da despesa. O último ponto foi uma tentativa frustrada de redução rápida da taxa de juros.

Dentre as ações intervencionistas de maior impacto constam: i) as intervenções junto aos derivados do petróleo, com o governo segurando, a partir de 2012, o aumento nos preços do mercado interno abaixo do internacional; ii) a queda “forçada” no preço da energia elétrica com o consequente prejuízo ao Tesouro; iii) a intervenção através dos sistemas de leilões e concessões, com a opção pelo critério da cobrança pelo menor preço de tarifa a ser cobrada; iv) desonerações tributárias (R$ 250 bi só em 2014); v) os subsídios de crédito sem precedentes na economia brasileira (R$ 412 bi a preços de 2017, entre 2010 e 2014); e vi) queda forçada na taxa de juros, já que entre agosto de 2011 e outubro de 2012, a taxa básica foi de 12,5% para 7,25% a.a. Entretanto, essa queda foi rapidamente revertida e em dezembro de 2014 já estava em 11,75%.

Quanto ao BNDES, além da política de escolha das “campeãs nacionais”, aponta-se a sua não atuação no incentivo à inovação. Essas críticas devem ser pelo menos relativizadas, dado que a maioria das empresas que recebeu investimentos deu grandes lucros ao banco. Ademais, o banco conseguiu obter lucros expressivos entre 2010 e 2019. Por sua vez, o incentivo às inovações saltou de R$ 563 mi em 2009 para R$ 6 bi em 2015. Já o volume de recursos de desembolsos para pequenas e médias empresas saiu de 15,4% em 2007 para 23,8% em 2014.

2) A Crise externa

As crises externas são um fator recorrente na desaceleração do crescimento das economias emergentes. No casso específico, para entender se de fato podemos dar um peso significativo ao cenário externo, cabe analisar os principais indicativos externos associados especialmente às economias exportadoras intensivas de commodities: crescimento do PIB mundial, preço das commodities e liquidez internacional.

Entre 2011 e 2016, o PIB mundial apresentou, em média, 3,63% ante uma média de 4,63% entre 2003 e 2010. Ou seja, houve uma queda 1,00 p.p., considerando que em 2009 registrou-se uma queda de 0,07%. No que tange à liquidez internacional, o período pós-crise foi favorecido pela queda e manutenção da taxa de juros das principais economias desenvolvidas. Todavia, a partir de meados de 2013 começam os rumores sobre uma elevação da taxa básica de juros dos EUA e a reversão de sua política monetária expansiva, conhecida como taper talks, provocando assim uma elevação na volatilidade dos fluxos financeiros para os países emergentes. Esses impactos são refletidos na dinâmica da taxa de câmbio dos países emergentes, que começaram a depreciar após 2013 e principalmente em 2015 e 2016. A volatilidade foi superior à observada em 2008/2009.

A combinação do taper talks e o ataque especulativo sofrido pela China, em 2015, impactou negativamente as principais commodities – o índice medido pelo FMI caiu de 159,123 em 2014 para 108,279 em 2015. É inegável que houve uma piora na situação externa em 2015 e 2016, e uma piora relativa nos aspectos gerais a partir de 2011, em contraste com a década anterior. Na comparação da economia brasileira com as maiores economias latino-americanas, o país acompanhou o ritmo de forma relativamente parecida até 2013 e um pouco menor em 2014. Mas nos anos de 2015 e 2016 a queda foi mais acentuada ante os demais países.

Os motivos elencados nos pontos 1 e 2 reduziram, como vimos, a dinâmica do país, fazendo com que o desempenho econômico tenha ficado aquém do potencial. A partir de 2015 essa queda do crescimento foi acentuada e até o momento não revertida. Os próximos itens procurarão responder quais fatores nos levaram a uma das maiores crises econômicas da história do país.

3) O fator Levy e o ajuste fiscal

No início do segundo governo da presidenta Dilma houve a opção por fazer uma ampla troca na equipe econômica, substituindo Guido Mantega por Joaquim Levy, ex-diretor de uma instituição financeira nacional. A nova equipe econômica inicia com uma agenda oposta à praticada no governo Dilma I, objetivando dar um choque ortodoxo para recuperar a confiança dos agentes privados. O foco principal seria, então, o controle da inflação e ajuste fiscal.

Houve interrupção em uma série de incentivos ao setor privado e os repasses do tesouro para o BNDES foram interditados. Adicionalmente, foram cortados gastos com benefícios sociais, tais como seguro-desemprego, auxílio-doença, abono salarial e pensão por morte, além de aumento da tributação sobre a folha de pagamentos. Como apontam Gobetti e Almeida (2016)2, esse conjunto de cortes nos gastos do governo foi reduzido de 12,8% em 2014 para 2,1% em 2015. No investimento público, observou-se uma queda de 29%. Na outra ponta, foram elevados os tributos sobre empréstimos, indústria automobilística e eletroeletrônica, gasolina, bens de consumo entre outros setores.

Nos preços administrados, os cortes mais significativos ocorreram no setor de energia elétrica e combustíveis. Em momentos de maior seca, as bandeiras amarela e vermelha refletiriam o aumento do custo e eventualmente necessidade em ligar as termoelétricas. Em 2015 ocorreu uma forte seca e o preço da energia correspondeu a incríveis 39,54% do IPCA. Os preços dos derivados do petróleo deixaram de apresentar uma maior estabilidade e, relacionados aos custos de produção, passaram a seguir uma fórmula que combina os preços internacionais de petróleo e da variação do câmbio.

O controle da inflação viria, portanto, do ajuste fiscal combinado de elevação da taxa de juros e relaxamento dos controles de câmbio, que, em conjunto, apreciariam o real frente ao dólar e contribuiriam para a queda dos preços. Contudo, esses movimentos não foram capazes de compensar os ajustes nos preços administrados. Muito pelo contrário, o IPCA fechou o ano de 2015 com uma alta acumulada de 10,67%, contra um avanço de 6,41% observado no ano anterior. Além da elevação da inflação, o emprego passou por uma piora significativa e não se recuperou desde então.

O resultado deste esforço fiscal foi uma piora no nível de déficits e endividamento público. Isto ocorreu pelo fato da receita tributária do Brasil ser fortemente pró-cíclica. A queda nos gastos governamentais leva a uma piora no desempenho econômico o que, por sua vez, provoca uma queda na receita.

4) A Lava Jato e o seu impacto sobre o setor de gás e petróleo e construção civil

A Operação Lava Jato foi fundamental no processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Deflagrada em março de 2014, é tida como um marco no combate a corrupção do país. Contudo, é estimado que entre 2015 e 2016 a operação teria sido responsável pela retração entre 2,0% e 2,5% do PIB, algo aproximado de R$ 142 bilhões sobre os setores metalmecânico, naval, construção civil e de engenharia pesada. Para termos ideia do impacto da Lava Jato, entre 2014 e 2017, o setor da construção civil registrou saldo negativo entre contratações e demissões de 991.734 vagas formais; entre 2014 e 2016, perderam empregos no setor 1.115.223 trabalhadores, 28,1% da perda total de postos da população ocupada. Apenas para ilustrar, a Odebrecht, que era a maior construtora nacional, teve em 2014 um faturamento de R$ 107 bilhões, com 168 mil funcionários, operando em 27 países. Em 2017, seu faturamento foi de R$ 82 bilhões, com 58 mil funcionários e operando em 14 países.

No setor de petróleo, a operação afetou os resultados financeiros da Petrobras, apresentando prejuízos líquidos de R$ 23,6 bilhões no último trimestre de 2014 e de R$ 36,9 bilhões no último trimestre de 2015. Os investimentos se reduziram de US$ 48,8 bilhões em 2013 para US$ 15,1 bilhões em 2017 (redução de 70%). Em participação do PIB, os investimentos caíram de 1,97% (2013) para 0,73% (2017) e de 9,44% em volume total de investimentos para 4,69%. No conjunto de investimentos públicos a queda da participação da companhia foi de 49,3% em 2013 para 36,5% em 2017. Entre 2013 e 2016, o número de trabalhadores formais no Sistema Petrobras se reduziu de 86.108 para 68.829. Entre os terceirizados a queda foi ainda maior de 360.180 para 117.555. O montante total da perda de emprego foi de 260 mil trabalhadores.

Em síntese, o impacto da Lava Jato na economia brasileira apresentou perdas muito maiores do que o efusivo retorno aos cofres públicos. Ilustra bem o saldo final desta operação, o acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, que trouxe para a Petrobras retorno de R$ 4 bilhões, enquanto as multas negociadas retiraram da companhia R$ 20,6 bilhões.

5) A crise política e o impeachment

O descontentamento com a quarta eleição vencida pelo PT, associado ao moralismo e ao apetite da oposição em retornar à presidência, leva-nos ao quinto ponto. O candidato derrotado Aécio Neves não apenas não reconheceu o resultado eleitoral, como estimulou os partidos opositores a fazerem uma ferrenha oposição. O epicentro da crise ocorreu com a abertura do processo de impeachment em 2/12/2015. O longo processo de desgaste que culminou com a saída da presidenta, foi acompanhado pelas chamadas “pauta-bombas”. Um exemplo disso foi o boicote do congresso ao ajuste gradual proposto pelo novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, em março de 2016, o qual objetivava levar a dívida pública para uma trajetória não explosiva, mas sem reduzir o gasto e investimento público rapidamente.

A meta do resultado primário era menos ambiciosa do que a do Levy, mas seria cumprida e com a vantagem de não atirar a economia ainda mais para baixo. Além disso, declararam a intenção de reformarem a Previdência, estabelecer uma regra, diferente do “Teto dos Gastos” que variaria de acordo com o PIB, além de suspenderem os aumentos reais do salário mínimo, o que reduziria o ritmo dos reajustes dos benefícios sociais. Ou seja, o governo Dilma apresentou propostas de controle dos gastos, do teto dos gastos e da Previdência. Contudo, o Congresso optou por negá-las e quando as retomou, optou por reformas mais regressivas em termos socioeconômicos.

Em síntese, a crítica recorrente e amplamente difundida na opinião pública, principalmente a não especializada em economia, de que o PT quebrou o país deve ser mais bem qualificada. Isto não só porque o uso do termo ‘quebrar’ é indevido, mas porque, no nosso entendimento, a crise envolveu elementos complexos, alguns de responsabilidade de fato da política econômica; outros muito além da capacidade de gestão do governo. Deste modo, entende-se que o argumento do mainstream sobre o excesso de intervenção e distorção dos mecanismos alocativos como causa da crise é superdimensionado.

Quanto à ênfase da heterodoxia desenvolvimentista no choque Levy, houve de fato um impacto contracionista, com a consequente redução dos investimentos públicos, queda nas receitas do governo e do PIB. Os outros fatores como a crise externa, crise política e a Lava Jato estão, portanto, fora da alçada da política econômica imediata, não cabendo medidas de responsabilidade direta à administração petista. A nossa contribuição nesse artigo foi de tentar oferecer um cenário sobre algumas dessas responsabilidades, importante aos que aspiram à retomada do crescimento e manutenção da democracia.