Quando escrevo este artigo, as eleições na África do Sul ainda estão sendo apuradas, mas o problema vai ficando evidente: a divisão do país em “feudos eleitorais” pode tornar a situação de difícil administração no próximo período, tensionando a política local e complicando a capacidade de atuação de um dos principais países do grupo conhecido como BRICS, do qual o Brasil é parte. Aliás, a partir desse ano, a África passa a contar com três países no grupo, pois além da África do Sul, passam a fazer parte do grupo Egito e Etiópia.

Quem viu o filme Invictus (2009), tantas vezes repetido na TV a cabo, deve lembrar do medo do presidente Nelson Mandela, vivido no filme por Morgan Freeman, de que a África do Sul não fosse capaz de manter a sua unidade após o fim do apartheid, o processo que havia institucionalizado a segregação no país. Assim, a ênfase do governo Mandela era tentar reduzir as expectativas da maioria negra e dar várias garantias à população branca. É nesse contexto que se dá o Mundial de Rugbi ganho pela África do Sul em casa, que é o tema do filme, e mostra bem claramente os movimentos políticos no país – tanto que o principal personagem do filme é o próprio presidente Mandela.

As coisas porém são significativamente mais complicadas. A África do Sul não se restringe a um Fla-Flu entre brancos e negros, mas a uma sociedade mais complexa, em que a maioria negra se divide em vários grupos (Zulus, Xhosas, Sothos, Tswanes, Sepedis e outros, sendo que os dois primeiros grupos representam quase 50% do total, com os Zulus com pouco menos de 30% e os Xhosas com pouco mais de 20%, enquanto que os outros três representam quase 30%, com cerca de 10% cada), nem todos com boas relações entre eles. Do outro lado, os brancos também se dividem entre os tradicionais Afrikaners, descendentes de colonizadores que vieram das atuais Bélgica e Holanda em busca de terras, mas também razões religiosas, e os descendentes de ingleses, que chegaram a travar guerras entre si. Existem também mestiços de longa data, do começo da colonização e da passagem de europeus pela rota da Cidade do Cabo, originalmente, conhecidos como “Coloureds”, que perfazem quase 10% da população total do país, assim como os brancos. E importante populações de origem indiana e de muçulmanos, trazidos em especial pelos ingleses (Gandhi, o pai da independência da Índia, viveu na África do Sul). Mas o problema não se resume à questão étnica. Essas populações se concentram regionalmente em algumas províncias. Por exemplo, os Zulus se concentram em KwaZulu Natal, em cuja capital, Durban, se concentram também os indianos. Coloureds se concentram na área da Cidade do Cabo, onde também existe grande percentual de população branca. Ou seja, o país apresenta enorme diversidade étnica e regional em sua população. O processo de luta contra o apartheid foi liderado pelo Congresso Nacional Africano (CNA), ele próprio uma coalizão de diferentes forças política, incluindo por exemplo, o Partido Comunista Sul-Africano, e várias organizações representando diferentes grupos étnicos. Assim, por muito tempo, ao menos até recentemente se podia resumir a disputa política na África do Sul entre o Congresso Nacional Africano, que lutou contra o apartheid, e a chamada Aliança Democrática (AD), partido político dos herdeiros do apartheid. Mas a complicação ainda não se encerra aí, pois desde a primeira eleição teve a participação forte do Partido da Liberdade – Inkatha, partido nacionalista Zulu, com uma importante presença na província de KwaZulu Natal, tendo como líder Mangosuthu Buthelezi, o líder tribal dos Zulus, até sua morte em setembro do ano passado.

Nessas eleições, vieram à tona as enormes diferenças étnicas e provinciais do país, e o CNA, que desde sua participação eleitoral com o fim do apartheid em 1994 mantinha a maioria no Congresso sul-africano, está a ponto de perder esta maioria, reduzindo-se a pouco mais de 40% da votação total.

E vale um breve parênteses. A África do Sul é um país presidencialista, mas o presidente não é eleito diretamente, ele é eleito pelo legislativo. Assim, a votação no legislativo é proporcional à votação recebida pelos partidos, e os parlamentares elegem o presidente. E, da mesma forma que o elegem, podem retirá-lo, não é um impeachment, o presidente é um representante da maioria parlamentar, embora não seja um primeiro-ministro. Assim, a população sul-africana nunca elegeu Mandela, por exemplo, elegeu o CNA que, por sua vez, escolheu seu principal líder para a presidência. Em 2018, acusado de corrupção, Jacob Zuma, o presidente, quando perdeu a maioria no CNA, renunciou e foi imediatamente substituído pelo novo líder do partido, Cyril Ramaphosa, atual presidente. Funciona desta forma a institucionalidade política por lá.

As eleições deste ano caracterizam a África do Sul não apenas como um país multipartidário (ao invés do bipartidarismo que na prática existia antes), com ao menos seis partidos competitivos e com representação parlamentar significativa. Além do CNA e a AD, e do Partido da Liberdade Inkhata,(IFP, na sigla em inglês) já citado, temos ainda o MK (uma abreviatura para um Khonto weSizwe, o partido organizado pelo ex-presidente Zuma, e que adotou o nome do antigo braço armado do CNA, cujo nome em zulu poderia ser traduzido para “Lança da Nação”, forte entre a população zulu – o ex-presidente Zuma foi o primeiro da etnia zulu a ser eleito presidente, os anteriores presidentes Mandela e Mbeki eram da etnia Xhosa), os “Combatentes da Liberdade Econômica” (Economic Freedom Fighters, EFF – não, não se trata de um partido radicalmente liberal, como o nome poderia sugerir, muito pelo contrário, é um partido marxista liderado pelo antigo líder da juventude do CNA, Julius Malema, que privilegia a intervenção do Estado e a luta pela redivisão da propriedade da terra, uma reforma agrária sem indenização), além da Aliança Patriótica (AP, um partido bastante liberal, esse sim, com forte base entre os Coloureds). Além da presença de outros menores, mas que devem ter representação parlamentar. Até o momento em que escrevo, com cerca de 99,8% dos votos apurados, o CNA lidera a apuração com pouco mais de 40%, a AD tem quase 22%, o MK quase 15%, o EFF quase 10%, o IFP quase 4% e a AP mais de 2%.

Além desse quadro político nacional complicado, o fracionamento da representação ficou claro. O CNA vai sangrando, mas ainda representa a referência para a maioria negra da luta contra o apartheid. A AD tem um passado a esquecer, mas tem um forte discurso anti-corrupção e bases fortemente estabelecidas em áreas como as províncias do Cabo Oriental e o Cabo Ocidental, especialmente esta última, onde governa com sucesso. Além disso, disputa fortemente em Gauteng (província onde está Joanesburgo, a principal cidade do país, centro econômico), onde tem cerca de 27% dos votos, contra um pouco mais de 36% do CNA. O MK (46%) e o IFP (16%) têm forte presença em KwaZulu Natal, província de concentração da população zulu, e em várias outras áreas do país onde há presença forte dessa etnia. O EFF tem forte presença entre a juventude, e também na província de Limpopo (cerca de 13%), no nordeste do país (na fronteira com Zimbábue e Moçambique), província de origem de Malema, seu líder. A AP, forte presença nas províncias do Cabo Ocidental (mais de 7%) e Cabo Setentrional (mais de 8%), áreas de concentração da população Coloured.

Se esses resultados se confirmarem, as coisas não vão ser simples. O CNA, para governar, terá que fazer alianças, o que nunca precisou. Mais complicado: a AD é rival histórico do CNA, assim como o IFP. E o MK e o EFF são resultados de divisões internas do CNA, a quem fazem muitas acusações, dificultando qualquer aproximação (o MK, por exemplo, cobra que para o começo de qualquer conversa, precisa da garantia da anistia ao ex-presidente Zuma). A AD, com um programa economicamente liberal, tem enorme dificuldade de aproximação com o MK (mais “estatista”) e uma impossibilidade com o EFF (que, além de ser de esquerda, defende a desapropriação de terras sem indenização, um anátema para os brancos proprietários de terra, base importante da AD). Uma coalizão entre o CNA e a AD não pode ser descartada nesta situação, pois uma grande coalizão daria estabilidade ao país, e os anos recentes mostraram que o CNA tem sido economicamente pragmático. O problema é que significaria para os dois partidos jogar fora seus principais cacifes eleitorais – para o CNA, a histórica luta contra o apartheid, quase que único ativo político importante do CNA hoje, embora um ativo fundamental; para a AD, menos pela questão histórica (já que talvez os próprios líderes do partido queiram colocar para debaixo do tapete o histórico de defesa do apartheid de seus políticos mais tradicionais), mas especialmente pelo discurso de crítica à corrupção do CNA, que é fundamental para a AD, e que permite inclusive que acesse de certo modo parte da maioria negra do país. Assim, as coisas não serão simples no pós-eleições na África do Sul, e a garantia de alguma estabilidade menos ainda. E, nesse quadro com forte coloração provincial do voto também, devem crescer as tensões em relação à unidade nacional.

É complicado para os BRICS e para o G20, ainda mais que no ano que vem o Brasil passa a bola para a África do Sul, que deve organizar a reunião do G20 e liderar as discussões. O problema é que, diante do quadro complexo da política nacional, quase todas as forças e capacidades políticas do governo que assumir o poder no país serão drenadas para a questão interna.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli

Clique aqui para ler artigos do autor.