No artigo passado, há duas semanas, depois de falar sobre algumas mudanças que se desenham no plano financeiro internacional, e também na chamada “desglobalização” produtiva, terminava alertando para que, frente a essas mudanças já perceptíveis, alguns países começavam a articular saídas, que passam por estruturar mecanismos alternativos, multilaterais, regionais ou bilaterais, de modo a não depender dos canais que sancionam a hegemonia estadunidense. Gostaria de seguir um pouco por esse caminho, já que alguns dos eventuais leitores inclusive fustigaram nesse sentido, para avançar um pouco mais nessa discussão.
A guerra e, antes dela, a própria pandemia, deixam e deixaram um rastro de desarticulação nas chamadas cadeias globais de produção. Muitos dos elos dessas cadeias foram interrompidos. A própria China, dentro de sua política de combate duro à Covid-19, em muitos momentos parou a produção de cidades e regiões inteiras em função da ocorrência de focos da doença. Essa desarticulação também tem levado a problemas para a circulação das mercadorias, como a falta de containers – que tem feito subir muito o custo dos fretes internacionais.
A subida brusca dos preços dos combustíveis também encareceu a circulação de produtos, especialmente partes da produção que antes circulavam livremente por todo o globo – com as empresas produtoras podendo estar em quase qualquer lugar, aproveitando-se de vantagens de localização para baixar custos.
O fato é que com esses problemas, muitas empresas buscaram reestruturar suas cadeias de fornecedores, concentrando-os no plano nacional, ou em países próximos. Dessa forma, reforçando a importância das regiões, em um processo de regionalização da produção. Em vários países onde setores inteiros de fornecedores tinham desaparecido, começam a ser vistos esforços do ponto de vista dos montadores de produtos finais para, de alguma forma, reorganizar sua cadeia mais local de fornecedores.
Esse parece que é um movimento que não é apenas conjuntural, como foi em outros momentos com eventual variação do câmbio (o Brasil mesmo viveu alguns processos do tipo, com as fortes variações cambiais na segunda metade dos anos 1990 e no início do Século XXI). Para alguns países, as novíssimas tecnologias da chamada “Indústria 4.0” ajudam a contribuir nesse processo. Frente ao que pode ser produzido por uma impressora 3D, por exemplo, qual a vantagem de deslocar parte da produção que buscava se localizar fora pelo custo da mão de obra?
Por outro lado, a pandemia e a guerra mudaram o tom da discussão internacional. O próprio debate sobre o chamado “livre comércio” tem mudado os rumos da discussão. Antes, como defesa radical do livre comércio, existia um discurso de comoditização dos insumos, partes e produtos. De uma forma ou de outra, sempre se poderia recorrer ao mercado internacional para que os países comprassem o que era necessário, fossem produtos primários (agrícolas, minerais e energéticos), fossem componentes e partes, ou produtos finais.
Desde a pandemia, começou a haver uma inflexão do tom da discussão. Em um primeiro momento, produtos relativos à saúde viraram estratégicos, sejam leitos hospitalares, ventiladores pulmonares, ou outros equipamentos de saúde, sejam os próprios insumos farmacêuticos, remédios e vacinas. O seu controle passa a ser estratégico para os Estados nacionais, que não podem se arriscar a ter o seu acesso a eles dificultado de alguma forma.
Com a guerra, e a subida dos preços internacionais, o problema se amplia, agora para alimentos, minérios e bens energéticos, como carvão e, especialmente, petróleo e gás. Estamos vivenciando nesse momento, um mundo cada vez mais atingido pela alta de preços de alimentos básicos e de petróleo. Cresce a necessidade de autossuficiência e dos chamados “fornecedores firmes” (contratos de longo prazo, nem sempre ditados pura e simplesmente por considerações de mercado, mas por parcerias estratégicas).
Finalmente, a guerra coloca (ou recoloca) os limites do mundo dolarizado. Muitos voltam a falar da reorganização de um comércio baseado em moedas nacionais ou em outras formas de compensação dos fluxos. É uma mudança radical do mundo financeiro sob domínio do dólar estadunidense ao qual nos acostumamos desde a reestruturação do sistema financeiro internacional no pós-Segunda Guerra Mundial.
A partir das mudanças que estão sendo vivenciadas, abrem-se muitas e interessantes possibilidades para países líderes regionais como o Brasil, de tentar estabelecer cadeias regionais de produção, comércio e consumo. Tudo é muito novo, as transformações ainda estão em curso, e é importante perceber ainda com mais nitidez o rumo final das mudanças, mas tem algo em curso que pode ser aproveitado. Vale refletir sobre as mudanças em andamento, e em especial sobre o papel do Brasil neste mundo em modificação.
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Ilustração: Mihai Cauli
Leia também o artigo “Putin explicou o risco do dólar“, de André Haines e Marcelo Fernandes.