Márcia acha que deveria estar feliz. Certamente, tem motivos. Tem saúde, não tem grandes perturbações, tem amigos e amores. Seus amigos e amores estão felizes e só isso já deveria ser suficiente para alguma alegria lhe atiçar os sentimentos. Mas ainda assim, não está feliz.

Também não está com a alma vazia, como costuma ficar nos dias e noites de tédio e solidão, em que dedilha o celular para não precisar pensar no vazio daqueles momentos. Seu espírito está remexido com todas as notícias dos últimos dias, com todas as mensagens das últimas horas. Com toda a efusividade que não sabe se verá também nas ruas. Mas não sabe bem dar nome ao que sente.

Sabe que está mais para alívio do que para alegria. Alívio é a sensação boa da certeza do fim de algo ruim. Já a alegria é a sensação boa causada por algo bom. Como o fim de algo ruim não deixa de ser algo bom, então o alívio também não deixa de ser uma alegria. Mas apesar de toda a filosofia que Márcia sabe fazer sobre os conceitos, ainda assim, não sente que seu alívio é feliz. Não sente haver nele mais alegria do que tristeza. E isso a incomoda.

Ele está condenado, finalmente. Os amigos comemoram. Seus amores comemoram. Ela mesma comemorou na internet. Mas não sabe se está pronta para comemorar na rua. Na internet dá para fingir alegria. Ao vivo é mais difícil. Marcia teme que seu alívio seja pouco para lhe deixar bem na festa e não estragar a alegria de quem ama.

Não sente pena dele. Nenhuma. Ele mereceu. Merece coisa ainda pior. Afinal, sua falta de inteligência emburreceu o país, sua falta de cultura empobreceu almas, sua desonestidade corrompeu virtudes, sua covardia apequenou a moral, sua brutalidade brutalizou a população, sua ambição e indiferença deixou centenas de milhares de pessoas morrerem, fora os crimes que cometeu. A pena é pequena perto de tudo isso. Há desproporção entre o sofrimento causado, o mal atiçado, a moral vilipendiada e a pena recebida.

Mas a falta de alegria de Márcia não vem da desproporção. Vem da tristeza de saber de tudo que aconteceu. De ter visto tudo que viu. De ainda sofrer vendo gente que se amava brigada por causa dele. Por causa de suas ideias vazias. De suas ambições travestidas de ideologias salvadoras e fortalecidas com fantasias conspiratórias contra inimigos fabricados.

Márcia sabe que as brigas, o vazio de ideias, as fantasias, os bodes expiatórios e toda violência que esse homem alimentou também dá de comer a muitos outros que continuam e continuarão a alimentar essa besta. Com sensacionalismos e malabarismos lógicos, eles continuarão dividindo, matando, adoecendo, corrompendo e enriquecendo.

Respira fundo pensando nisso tudo. Daquele respirar fundo de alívio, mas também de busca de força. De recomposição das emoções e pensamentos.

Márcia está aliviada, não feliz. Feliz estaria não com um mal punido, mas com um mal não acontecido. Feliz estaria se, nesse mundo, ou ao menos nesse país, o mal ainda significasse o mal para todo mundo. E não um carimbo moral que se estampa sobre pessoas ou ideias que não dão lucro.

Ao contrário da felicidade, não há um protocolo social para o alívio. Há só a placidez de um momento sem dor, ou com uma dor a menos. Talvez, Márcia comemore apenas com seus bichos, livros, pensamentos e uma garrafa de qualquer coisa que a faça não pensar em todo mal que esse sujeito causou.

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Ilustração: Mihai Cauli
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