Alma incendiária

A fumaça chegou como uma bruma asfixiante. Era como se toda a cidade fosse magicamente afetada por ela. Não apenas pelos olhos irritados e pulmões sufocados, mas de alguma maneira, aquela fumaça parecia afetar as mentes já perturbadas dali. A tal ponto que chegavam a se alegrar com toda aquela fumaça. 

Não havia muito verde por lá e, talvez, a vida cercada de concreto e asfalto tivesse também concretado e empixeado os corações daquela gente. Como se o lado de dentro fosse o espelho do que se vê do lado de fora. 

Levavam sua vida a erguer sobre qualquer terra imunda coisas de concreto que permitissem ganhar dinheiro limpo. E para eles qualquer terra, por ser terra, era imunda, e qualquer dinheiro, por ser dinheiro, era limpo. 

Perto da cidade, havia lugares com o verde de plantações e, distante, outros com o verde de florestas. Também havia gente nestes lugares, mas que o pessoal da cidade via como gente inferior. Gente de vidinha porque se sujava da imundície da terra. Gente que julgavam triste porque não tinha a grana que se tinha na cidade. Tinha só os perigos das coisas da natureza, que os da cidade temiam como se fossem mais perigosos que os perigos da cidade. 

Como a gente da cidade é que dizia para todo mundo o que era viver bem, o pessoal que vivia nos lugares verdes passou a acreditar que, realmente, a vida deles era só uma vidinha perto do vidão que se poderia ter no concreto e no asfalto.  

Alguns foram para a cidade, tentar o vidão. Mas descobriram que para eles não havia concreto à disposição, só coisas de madeira, nos cantos da cidade, onde morar, o asfalto era só para buscar o que comer. Logo descobriram que no asfalto se ganhava a vida com mais suor e perigo que na terra imunda. 

Os que ficaram nas terras verdes de plantação entenderam que deveriam fazer do verde de onde viviam, concreto e asfalto como na cidade. Aproveitaram a seca e colocaram fogo nas plantações. Era o fogo do progresso. Jeito de se livrarem daquele mato que aprenderam com o pessoal da cidade a achar sujo e perigoso. 

Já os que viviam na floresta, muito mais longe da cidade e menos longe das plantações, mas de olhar tão curto quanto os da cidade, queriam fazer de sua mata perigosa e inútil, plantação que lhe desse dinheiro para ter as coisas da cidade. Também viram no fogo o caminho para a vida boa. 

Uns poucos, entre uma tosse daqui e lágrimas de olhos irritados dali, tentaram dizer a todos que queimar tudo era loucura. Que a terra não era coisa suja. Que a vida não era só pedra, pixe e grana. Quem tinha poder até fazia de conta que achava que eles tinham razão, mas, na prática, muito antes de terem os olhos vermelhos de fumaça, os tinham embotados de pedra e pixe e o único verde que realmente amavam era o do dinheiro estrangeiro, que como tudo do estrangeiro, valia mais do que as coisas dali. Queimar dinheiro estrangeiro seria loucura, já as coisas dali eram todas lenha para a fogueira do progresso. 

Assim queimavam, assim deixavam tudo queimar. No fundo de seus corações petrificados, não viam nenhum problema em destruir nada daquele lugar. Nem o verde, nem a economia, nem as leis, nem a política, nem as pessoas. Tudo lhes era destrutível em nome do dinheiro. E em nome do dinheiro, queimavam o que podiam e idolatravam quem agia de maneira a botar fogo em tudo… 

…A alma incendiária chora de alegria enquanto queima a si mesma. 

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Ilustração: Mihai Cauli 
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