Alteração no centro de gravidade da política

I

Outra das consequências da existência e em seguida da derrota do que à época se nominou o eixo do mal foi que, como escreveu Judt, “nos anos que se seguiram a 1945 o centro de gravidade da discussão política não se achava entre a esquerda e a direita, mas sim dentro da esquerda: entre os comunistas e seus simpatizantes e o consenso liberal-social-democrata majoritário” (Algo Va Mal). De lá para cá, houve uma lenta, mas persistente reversão neste panorama até chegarmos ao seguinte quadro: dos 27 países que compõem a União Europeia, apenas seis são atualmente governados por partidos de centro-esquerda ou de esquerda, como o ilhado caso espanhol, gerido até pouco tempo atrás por uma coalizão de PSOE com Unidas Podemos e aliados. Essa composição já não existe e Unidas Podemos foi substituído por uma nova e mais indefinida formação, SUMAR, mais próxima do que é o próprio PSOE e dos Verdes alemães. E dentre esses seis governos há que considerar, por exemplo, o SPD de Olaf Scholz firmemente abraçado, por um lado, com os Verdes, e por outro, com a política do Império – ambos entusiásticos animadores do massacre dos palestinos por Israel em Gaza. Todos os 21 restantes estão sob o controle de partidos de direita ou centro-direita. Convenhamos, é uma reversão danada de brutal.

II

“Onde os conservadores podiam apontar um contraste entre eles e a antiga esquerda era justamente no questionamento do Estado e de seus usos. Mas, mesmo nesse caso, foi somente em meados da década de 1970 que surgiu uma nova geração de conservadores que ousou desafiar o ‘estatismo’… e oferecer prescrições radicais para uma saída do que foi descrito como a ‘esclerose’ de governos excessivamente ambiciosos e seu efeito sufocante sobre a iniciativa privada”, escreveu Judt no seu derradeiro livro. Até que lá pelo final da década de 1970 apareceu na Europa a sra. Margaret Thatcher e do outro lado do Atlântico, Ronald Reagan. E antes que chegasse ao fim tanto o governo da britânica quanto o de Reagan, um estímulo extra para o festim do ultraliberalismo e da farra da direita e da ultradireita: a queda do muro de Berlim, firmando o atestado de óbito da tristemente larga experiência estalinista e algumas das suas variantes – que era, ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma espécie de contrapeso, um contrapeso morto ou paralítico à expansão das forças do mercado, mas não uma alternativa.

III

Não há talvez fotografia que ilustre melhor esse desastre político da trajetória vivenciada pela França nas últimas décadas. Os então todo-poderosos comunistas e seus rivais social-democratas foram simplesmente escanteados para a irrelevância, primeiro os comunistas, logo os socialistas, que nas eleições de 2017 viram sua bancada despencar de 314 para 31 deputados na Assembleia Nacional. Os novos protagonistas? Emmanuel Macron (ex-banqueiro de investimentos e atual presidente) e Marine Le Pen (filha de Jean-Marie Le Pen, o fundador da Frente Nacional, a primeira agremiação de extrema direita a dar as caras e obter resultados eleitorais expressivos na Europa após a derrota do nazi-fascismo na II Guerra). Candidata nas presidenciais de 2012, terminou no terceiro posto. Nas seguintes, em 2017, avançou para o segundo turno, no qual foi batida por Macron e praticamente todas as outras forças políticas do país.

IV

Curvas de fluxo e de refluxo, queda e ascenso nos prazos mais curtos, mas quando se olha mais de longe, uma larga e aterrorizante curva de crescimento. Esse é o desenho da trajetória da direita e da extrema direita no velho continente e, de resto, em quase todo o planeta – a espantosa resiliência de Trump nos Estados Unidos, a não menos espantosa resiliência de Bolsonaro no Brasil. Com um agravante: com a força gravitacional de um astro gigante, essa fermentação imparável do direitismo e em particular da ultradireita e da ideologia deletéria que a formata, com raras exceções, vai arrastando na sua direção toda a pauta da esquerda.

V

Nos últimos anos, a Espanha se situa como uma honrosa exceção – no mapa político que mostra a composição dos 27 governos dos países da União Europeia, é o único que aparece caracterizado como de esquerda. Mas está em sério risco. Pelo menos enquanto durou a experiência do primeiro governo de coalização desde a redemocratização, de janeiro de 2020 até as eleições de 23 de julho de 2023, nas quais, no entanto, Unidas Podemos já não se apresentava com o mesmo protagonismo, houve significativos avanços em benefício dos trabalhadores, nas políticas de gênero e de proteção das mulheres e das minorias. Nos cinco anos desde o início do governo do PSOE, apoiado por Unidas Podemos, e a partir de janeiro de 2020 em composição com esse partido, o Salário Mínimo Interprofissional (SMI) subiu 46%, de 736 euros para 1.080 euros em janeiro de 2023 – em janeiro do presente ano passou a 1.134 euros. Durante a pandemia, aprovaram uma renda mínima vital para pessoas com mais de 23 anos de idade em situação de vulnerabilidade econômica e destinada a evitar o risco de pobreza e exclusão social. Fizeram aprovar a lei da eutanásia (apenas quatro países da Europa a permitem) e a “Lei do Aborto”, uma das medidas mais relevantes do Ministério da Igualdade, “a lei permite que mulheres de 16 e 17 anos e pessoas com deficiência interrompam voluntariamente a gravidez sem a necessidade de consentimento de seus representantes legais e que esse serviço seja garantido em centros públicos e privados”. Não é pouca coisa para um país que foi dos últimos a deixar para trás uma ditadura fascista, em 1978, e que pouco mais de um ano após o fim do governo da direita tradicional (Partido Popular) está convivendo com um crescimento espetacular da ultradireita (Vox) – o partido de Santiago Abascal tinha zero representantes no parlamento no início do governo de Pedro Sánchez e na primeira eleição geral realizada em abril de 2019 conseguiu nada menos que 24 deputados, subindo para 52 no pleito de novembro daquele mesmo ano.

VI

Mas não foi apenas a ultradireita que cresceu. Também o PP viu aumentar, e muito, sua força eleitoral, ganhando nas eleições de maio de 2023 em muitas das Comunidades Autônomas (o que seriam os estados, no Brasil) onde antes governava o PSOE. E novamente bateu os socialistas dois meses depois, em julho, nas eleições gerais. Se não governa agora é porque não conseguiu somar aos seus votos nenhum voto que não fosse os da ultradireita, insuficientes para chegar à maioria necessária para compor o governo. Poderíamos então pensar que esse crescimento é produto de uma economia em crise, talvez como resultado do longo período da pandemia e, logo, dos efeitos da guerra na Ucrânia. E, no entanto, não. Pode não estar tendo um desempenho espetacular, mas segue crescendo razoavelmente bem (2,5% contra 0,7% na vizinha França e -0,3% na Alemanha, em 2023). Então, por que? (Aliás, uma certa semelhança com o Brasil. Se com todas as dificuldades o desempenho do governo Lula e da economia brasileira está pelo menos ligeiramente acima do razoável, como se explica a manifestação bolsonarista na Paulista no dia 25 de fevereiro? – que pode ser qualificada de n formas, mas dificilmente como um fracasso.) Vale lembrar que frente ao fortalecimento do rival Vox, e de forças ultradireitistas dentro da sua própria agremiação, o que fez a direção do PP foi redesenhar a rota do partido e, num gesto quase que automático de sobrevivência, forçar seu discurso ainda mais para o espaço que vinha sendo ocupado por Santiago Abascal. Pelo resultado das duas eleições do ano passado, soa ter sido uma decisão acertada. Assim, parece evidente essa torção de uma parte importante do eleitorado à direita, mesmo num país onde o governo de esquerda tem apresentado resultados para lá de positivos. Então, de novo, por que?

VII

Uma pergunta feita por Mike Davis no livro Apologia dos Bárbaros (Boitempo, 2008) talvez nos ajude a compreender esse universo que às vezes nos parece paradoxal – e que talvez seja paradoxal. Num capítulo dedicado a polemizar com o “best-seller de Tom Frank O que há de errado com o Kansas?” ao qual ele dá o título de O que há de errado com os Estados Unidos? Davis pergunta: “A vitória de George W. Bush pelo voto popular confirma a tese de Frank de que a classe trabalhadora branca abriu mão de qualquer cálculo racional sobre seus interesses econômicos em favor de um ódio cultural niilista e manipulável?” Embora reconheça méritos na análise de Frank, Davis recorrerá a todo o repertório da boa ortodoxia marxista para questionar com elegância e profundidade essa ideia. É bem provável que seus argumentos sejam mesmo válidos, pelo menos para o caso em questão: o referido resultado da eleição no Kansas e na vitória dos republicanos nos Estados Unidos de Bush. Mas o que também não deixa dúvidas é de que, sim, não são poucas as vezes em que a classe trabalhadora e as classes populares em geral abrem “mão de qualquer cálculo racional sobre seus interesses econômicos” em favor de ódios e rancores facilmente manipuláveis. E isso é o que estamos vendo com frequência crescente, seja na Europa de Marine Le Pen, Abascal, Orban ou Giorgia Meloni, seja no Brasil de Bolsonaro ou a Argentina de Milei.

ISRAEL

O que dizer desse frio fuzilamento de civis palestinos amontoados e famintos pelos militares israelenses? O que mais se pode dizer? Exigir que os Estados Unidos condenem e peçam de joelhos para que Netanyahu interrompa a matança, depois de havê-lo autorizado, estimulado e de seguir provendo seus soldados das armas necessárias para o cometimento desses assassinatos? Pedir que Macron mande soldados da OTAN para apaziguar a sede de sangue da armada israelense? Implorar para que a Alemanha e a senhora von der Leyen visitem novamente o primeiro-ministro e os chefes do Likud para dizer-lhes que basta, que já foram longe o suficiente, depois de lhes haver dado carta branca para fazer o que julgassem necessário “para se defenderem”? E, finalmente, pedir encarecidamente que os que pediram que o presidente do Brasil se desculpasse com Israel lhe peçam agora desculpas?

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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