Amor e guerra

Amanda chegou cansada e com fome. Hesitou entre a vontade de comer e a preguiça de cozinhar. Pensou em pedir algo por aplicativo, mas até a ideia de que teria que descer para pegar a comida a desanimava. No embate, cedeu ao descanso. Tacou-se no sofá e atirou longe as sandálias num chute de bailarina. Zapeou a tv a cabo em busca de alguma distração.

Ela sabe que o dia dos namorados é uma data comercial. Invenção de publicitários. Corrupção de sentimentos em grana. Mas não adianta, na sua solidão, Amanda se sente ainda mais sozinha neste dia. Sozinha de tudo. Sozinha de todos. Tem suas histórias de amores fracassados, de beijos intensos e momentos de prazer retumbantes, mas todas as memórias de suas glórias eróticas e fracassos amorosos parecem vazias diante da sua expectativa de, um dia, quem sabe, amar e ser amada de verdade. Consolou-se no vazio da TV.

Conseguiu não pensar em nada pelo tempo em que na tela desfilava a pantomima de propagandas e ficções. Entediou-se com o nada e aventurou-se em outros canais, disposta a encher a cabeça com alguma coisa. Parou nas notícias. Imagens de explosões em cidade desconhecida. Israel ataca Irã. Coisa grande. Talvez, de tanto assistir a ficções, aquilo lhe parecia coisa de ficção. Havia a inacreditabilidade do espanto. O horror do espetáculo de mortes que imaginou poder ser o começo de um horror que lhe atingiria um dia.

Lembrou-se da fome quando viu uma propaganda de comida. Ainda sem ânimo para cozinhar, colocou um saco de pipocas para estourar no microondas. Voltou para sala e aumentou o volume da TV. O estrondo da explosão mostrada na tela coincidiu com o primeiro pipoco no microondas. Assustou-se, como se aquela guerra no fim do mundo tivesse chegado para acabar com o seu mundo.

“O mundo vai acabar e eu estou sozinha…”, pensou. Mas quem não está sozinho neste mundo cheio de ódios? Onde há um “nós” e um “eles”, as uniões não são por afeto, mas afinidades. Mesma língua, mesma cor de pele, mesmas rezas, mesmas mesmices. É como se todo mundo amasse apenas o espelho. Mas amor de espelho é pouco para Amanda. Ela espera um amor de diferença, de completude, de preenchimento dos vazios de sua vida e não de mais dos mesmos vazios.

Distraiu-se de sua distração prestando atenção aos comentaristas da tv. Comentaristas de sempre e de tudo. Especialistas nos assuntos do dia. Falavam de estratégias, de motivos para gente de um país matar os de outro. De como o outro vai reagir. Especula-se sobre especulações porque os fatos são curtos e simples. Gente matando gente. E sobreviventes a fim de matar para lidar com a tristeza. “Será que algum deles entende de amor? Teriam alguma coisa verdadeira a dizer sobre amor?”. Achou os comentários vazios como seu vazio de amor.

Pensou em ligar para alguém, só para ter com quem conversar. Estava tarde demais. As pessoas com quem faria algum sentido conversar deviam estar dormindo ou gastando dinheiro em restaurante para dizer que ama, quando poderia apenas dizer que ama e amar. Mas nada no mundo é simples. Tudo é dinheiro, tudo é poder, tudo é guerra. É preciso matar para ter poder e é preciso ter poder para ter dinheiro, mas matar custa caro e é preciso mais dinheiro para matar mais e ter mais poder para poder matar. “O mundo é louco. Está vendido. E eu estou sozinha no mundo louco. E ninguém vem me comprar”.

Quando lembrou da pipoca ela já estava fria no microondas. Comeu tomando o resto da garrafa de vinho que descansava na geladeira desde a semana passada. Bebeu no gargalo mesmo só para não ter o trabalho de limpar um copo. Estava cansada. Estava sozinha. Estava com fome. “Mas estou lúcida”, disse em voz alta. “E o mundo, está?”.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli 
Clique aqui para ler artigos do autor.