“Para triunfar, o mal precisa só da inação dos homens de bem”. (John Stuart Mill)

A extrema direita brasileira ganhou as eleições em 2018 com base em disparos em massa na internet, manipulando a insatisfação das pessoas com a política.

Nos quatro anos de governo, a máquina digital bolsonarista foi avassaladora – uma verdadeira linha de produção na qual as ideias que saíam do Planalto eram implementadas em diversos ministérios e gabinetes de deputados. Vídeos de matérias governistas produzidas pela TV Brasil e emissoras amigas eram editadas e compartilhadas. Frases de discursos do presidente eram destacadas em cards e robôs, para replicação. Além disso, essa máquina dispunha de grande número de seguidores no Telegram, Twitter (X), Youtube, Instagram, Facebook, além de milhares de correntes no WhatsApp.

Tanto na campanha como nos primeiros anos de governo, Bolsonaro seguiu a cartilha trumpista de atacar instituições e jornalistas, questionar a lisura das eleições, minimizar problemas econômicos e sociais, tudo permeado por campanhas de fake news.

Com a proximidade das eleições, Bolsonaro esforçou-se por amenizar o tom com a adoção de uma linha menos beligerante, correndo menos riscos de confronto com o judiciário e dedicando-se a inaugurações, a maioria delas de pedras inaugurais e obras ainda em andamento, com expressivos contatos diretos com apoiadores. Um ano antes das eleições de 2022 ele já estava em plena campanha eleitoral, com o auxílio de sua poderosa máquina pública.

Para Steve Bannon e Jason Miller, Bolsonaro já dispõe do autoritarismo como instinto natural. Eles contribuem aportando uma base intelectual e ideológica mais sofisticada. Mesmo assim, é no conflito e na radicalização que ele sempre ficou à vontade; é o que ele sempre soube fazer.

Após uma campanha acirrada e uma avalanche de recursos ilegais de “compensação social” para comprar votos, graças à formação de uma frente ampla que contou com o apoio corajoso de parcela do PMDB, do PSB, e de figuras da centro direita, a democracia ganhou as eleições por um triz, nos pênaltis.

Bolsonaro dispunha e ainda dispõe de grande respaldo na população contrária aos progressistas e descrentes da política. Ela cai no engodo da chama do radicalismo e da extrema habilidade da extrema direita de distorcer a realidade, construir realidades paralelas e espalhar fake news em série. Tudo com base em enorme capacidade de criar sofismas e palavras de efeito, propagandeada através de selfies nas redes sociais que, por definição, não se baseiam em análise crítica, mas sim, em likes ou curtidas. Essa nova propaganda se alimenta de emoções negativas, fake news e teorias da conspiração, que garantem engajamento dos trolls, incendiários do suposto equilíbrio do establishment.

Caetano Veloso, na letra de sua música “Anjos Tronchos” do Vale do Silício, descreve o cenário político violento, com a ascensão de autocratas mundo afora – “os palhaços líderes” que “brotaram macabros”, na direção oposta da prometida revolução democrática da internet.

“Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram: Vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis (…)”

O populismo radical de direita tem por base (i) a cólera popular originada pelas reais desigualdades econômicas e sociais e descaso dos políticos corporativistas e/ou corruptos e (ii) uma máquina potente de comunicação comercial transformada em instrumento de rejeição às elites, com foco na opinião pública e na negação da política. Não se trata mais de democracia representativa, mas sim, de democracia direta, na qual os representantes dos cidadãos desaparecem já que seriam os próprios cidadãos que tomariam as decisões. E como instrumentos, existem as redes sociais que têm aumentado consideravelmente o nível de ira já presente em nosso mundo. Os especialistas em conquistar engajamento nas redes compreenderam bem que a raiva é uma fonte colossal de energia, sendo possível explorá-la a partir da decifração dos códigos corretos e utilização da tecnologia.

Para fazer política tradicional é preciso entrar para um partido e ralar anos a fio. Alternativamente, através da internet, é possível fazer política a qualquer momento, publicando comentários num blog ou numa plataforma, o que é concebido e gerido por ideólogos e cientistas especializados em Big Data e seus avatares. Nas palavras do consultor em internet para a extrema direita italiana, Davide Casaleggio, ao Corriere della Serra: “(…) a velha partidocracia é como uma [videolocadora] Blockbuster, enquanto nós somos como a Netflix.”

Como criaturas sociais, nosso bem-estar depende da aprovação de nossos pares. O diabólico poder de atração das redes sociais se baseia nesse conceito. Cada curtida é uma carícia maternal em nosso ego. O importante documentário “Social Dilemma” (Netflix) retrata bem o impacto das plataformas de internet na psicologia das pessoas e, principalmente, das crianças.

Veja o que diz Sean Parker, o primeiro financiador do Facebook:

  • Nós fornecemos a você uma pequena dose de dopamina cada vez que alguém o curte, comenta uma foto ou um post, ou qualquer outra coisa sua. É um loop de validação social, exatamente o tipo de coisa que um hacker como eu poderia explorar, porque tira proveito de um ponto fraco da psicologia humana. Os inventores, os criadores, eu, Mark Zuckerberg, Kevin Systrom, do Instagram, estávamos perfeitamente conscientes disso. E, mesmo assim, fizemos o que fizemos. E isso transforma literalmente as relações que as pessoas têm entre si e com a sociedade como um todo. Interfere provavelmente na produtividade, de certa maneira. Só Deus sabe qual o efeito que isso produz nos cérebros de nossos filhos.

As redes sociais, calcadas na psicologia humana, nos mantém num estado de incerteza e de carência permanente. Os clientes ideais são aqueles seres compulsivos que voltam às plataformas várias vezes por dia, fissurados por essas pequenas doses de dopamina da qual se tornaram dependentes, ou vendo compulsivamente seriados de streaming onde o engajamento se dá a partir da identificação muitas vezes projetadas do público nos arcos dramáticos dos roteiros.

Os estudiosos que observam a desinformação, o impacto do meio digital na vida das pessoas e a relação entre radicalismo e internet já mapearam muito bem seu funcionamento e seus problemas. E já sabem que as soluções residem na obrigatoriedade de transparência dos algoritmos, de modo que as pessoas se conscientizem de que as redes atuam para nos deixar vidrados, como se fosse dependência química, num estado de constante irritação com aqueles que são diferentes de nós. É o caso do Facebook, com 3,5 bilhões de clientes.

Hoje, nas redes sociais, somos adolescentes fechados em nossos quartos, vivendo a dicotomia entre nossas vidas miseráveis e aquelas maravilhosas alternativas que nos são apresentadas em nossos computadores e monitores de celular. Movidos pelo receio à inadequação e pelo afeto narcisista da raiva, nossa grande probabilidade é acabar terminando em sites pornográficos ou conspiratórios.

Nas plataformas online encontram-se milhões de jovens vivendo uma realidade paralela à qual se afeiçoaram e nas quais estão dispostos a um pleno engajamento individualista. Foi para essa dimensão cibernética que os jovens se transferiram, levando com eles a significativa energia e o poder transformador que os caracteriza. E o desafio, segundo Steve Bannon, é conseguir canalizar essa energia revolucionária dos jovens na direção da política.

A pesquisa da ONG chilena Latino barômetro, conduzida em 18 países latino-americanos e concluída em dezembro de 2020 revelou que 13% da população ainda prefere governos autoritários e 27% são indiferentes ao regime de governo. No Brasil, a indiferença alcança 36% da população. Esta é uma clara indicação de como os latino-americanos se afastaram da política. No Brasil, pouco menos de 40% dos entrevistados apoiam a democracia.

A ideia básica é a de que os políticos são todos imprestáveis, sendo os culpados pela democracia ter virado uma piada e de ninguém saber mais para que ela serve. Daí surgem os porta-vozes dos desalentados, nutrindo-se do ódio, da paranoia e da frustração dos outros. Através da guerrilha virtual, a indignação, o medo, o preconceito, o insulto, a polêmica racista ou de gênero ganham muito mais engajamento do que os enfadonhos debates da velha política.

Nas palavras de Giuliano Da Empoli, em seu magnífico livro “Os Engenheiros do Caos”:

  • (..) já está comprovado que as forças da ira se reorganizaram e expressam-se no centro da galáxia dos novos populismos que, do Leste Europeu aos Estados Unidos, passando pela Itália, a Áustria e os países escandinavos, dominam cada dia um pouco mais a cena política de seus respectivos países. Para além de todas as diferenças entre si, esses movimentos têm como ponto comum o fato de pôr em primeiro lugar de sua agenda política a punição das elites tradicionais, de direita e de esquerda. Essas últimas são acusadas de terem traído o mandato popular, ao cultivar os interesses de uma minoria restrita em vez de servir aos anseios da “maioria silenciosa”. Muito mais que medidas específicas, os líderes populistas oferecem aos eleitores uma oportunidade única: votar neles significa servir de torcida contra os governantes. (…) o populismo é filho do casamento entre a cólera e os algoritmos.

Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit, escreveu em seu blog: “se você quer fazer progresso em política, meu conselho é contratar físicos, e não experts ou comunicadores.” Realmente, alguma coisa fundamental mudou na relação entre a tecnologia e a política. Basta atentar para a investida dos veículos de mídia contra os manipuladores ocultos (Facebook, Cambridge Analytica, blogueiros macedônios, fazendas de trolls russos, etc.) acusados de terem manipulado votos improváveis. Ora, hoje, todos nós somos rastreáveis com nosso celular no bolso. Com a internet das coisas, aparecerá a indústria da vida, que suplantará todas as outras.

Por exemplo, na campanha em favor do Brexit, os físicos estatísticos cruzaram dados das pesquisas no Google com os das redes sociais e com bancos de dados tradicionais para identificar os potenciais apoios à saída da UK da Comunidade Europeia. Assim, por meio do Lookalike Audience Builder, do Facebook, identificaram os persuasíveis. Segundo Cummings, “durante as dez semanas que durou a campanha oficial, nós produzimos quase um bilhão de mensagens digitais personalizadas, principalmente no Facebook, com uma forte aceleração durante os dias que antecederam a votação.” O Facebook lhes permitiu testar simultaneamente dezenas de milhares de mensagens diferentes, selecionando em tempo real aquelas que obtinham um retorno positivo e bem-sucedido e conseguindo, por um processo de otimização contínua, elaborar versões mais eficazes para mobilizar partidários e convencer os céticos. Graças ao trabalho desses físicos aplicado à comunicação, cada categoria de eleitores recebeu uma mensagem sob medida: animalistas (proteção aos animais), caçadores (restrições à caça), liberais (burocracia de Bruxelas), estatistas (recursos desviados do bem-estar para a burocracia), etc. As mensagens mais eficazes foram identificadas tanto em relação ao texto como no tocante ao aspecto gráfico, tudo feito com base em cliques registrados em tempo real. A campanha vitoriosa do Brexit foi investigada sob a acusação de ilegalidade no envio de mais de um bilhão de mensagens personalizadas aos eleitores britânicos. Por certo, não deu em nada.

No passado, a partir de sondagens de opinião, os especialistas políticos podiam atingir aglomerados demográficos (estudantes, donas de casa, professores, etc.). Hoje em dia, os físicos estatísticos enviam mensagens personalizadas a cada eleitor, com base nas suas características individuais, o que é uma comunicação mais eficaz e racional.

Como diz Giuliano Da Empoli, em seu livro “Os Engenheiros do Caos”:

  • É cada vez mais raro ter acesso a conteúdos que não sejam feitos sob medida. Os algoritmos da Apple, do Facebook ou do próprio Google fazem com que cada um de nós receba informações que nos interessam. Assim, na política quântica, a versão do mundo que cada um de nós vê é literalmente invisível aos olhos de outros, o que afasta cada vez mais a possibilidade de um entendimento coletivo. Segundo a sabedoria popular, para se entender seria necessário “colocar-se no lugar do outro”, mas na realidade dos algoritmos essa operação se tornou impossível. Cada um marcha dentro de sua própria bolha, no interior da qual certas vozes se fazem ouvir mais do que outras e alguns fatos existem mais do que os outros. (…) não são nossas opiniões sobre os fatos que nos dividem, mas os fatos em si.

Resumidamente, é criada uma máquina poderosa voltada originalmente para os gostos e aspirações dos consumidores. De repente, a política se apropria desse motor comercial. Por força dessa poderosa máquina, as campanhas eleitorais se tornaram verdadeiras guerras de softwares nas quais os oponentes se enfrentam usando armas convencionais (mensagens e informações verdadeiras) e não convencionais (manipulação e fake news). Nessa guerra, na internet, o núcleo dos apoiadores – sites, blogs e páginas de Facebook – são a fonte primária de suporte eleitoral aos Brexits, Trumps, Orbans, Salvinis e Bolsonaros da vida. Nelas são confeccionadas artesanalmente fake news e também falsos perfis e robôs automáticos. O centro do sistema são os extremistas, já que o jogo político visa desunir da forma mais explosiva possível, e não mais unificar.

Voltando à nossa dura realidade brasileira, a polarização está instalada. As bancadas da bala, do agro e a dos evangélicos estão cada dia mais fortes. A avaliação do governo Lula parece apresentar uma tendência de queda. O Congresso nunca foi tão conservador e, apesar de todos os malfeitos do governo Bolsonaro, ele ainda arregimenta um expressivo número de seguidores radicais. Paira muita dúvida se haverá ou não alguma punição para a conspiração de golpe que já foi objeto de colaborações premiadas e depoimentos contundentes. Contudo, é bem provável que com a coibição judicial que a extrema direita vem sofrendo em suas plataformas, arrefecerão os bombardeios de memes, vídeos, áudios, correntes e fake news, parte das quais distribuída por robôs, disparados ilegalmente através do WhatsApp e YouTube. Boa notícia para a diminuição da polarização.

Mesmo assim, é de se esperar a continuidade de grande tensão num contexto de intensa guerra de narrativas e fake news, além de muita contestação a tudo que venha do governo Lula, postura que se potencializa pelas frequentes recaídas do PT em não respeitar o Plano de Governo de Centro, eleito nos pênaltis em 2022, e que refletia o consenso de uma coalização progressista (direita, centro e esquerda).

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “Infocracia e crise da democracia“, de Luiz Marques.