Até no futebol podemos ver como temos regredido – como civilização e humanidade. Imagina a seleção de Pelé, Gerson, Tostão & Cia elevando as mãos aos céus em sinal de submissão ao Senhor, seja quem diabos for esse Senhor ao qual se apela por bênçãos, pela salvação ou por castigos ao inimigo. É literalmente inimaginável. Mas se isso está demasiado distante no tempo, imagine-se então, a maravilhosa (ainda que não campeã do mundo, quem sabe se não por castigo divino) seleção de Telê Santana, o encantado (ou amaldiçoado) time de Sócrates, Zico, Falcão & Cia orando aos céus antes de qualquer desafio. Quem sabe você consiga – ao menos no pior dos seus pesadelos?
Manifestações religiosas se tornaram tão frequentes nos campos de futebol quanto na política – na porta de tribunais, no interior de parlamentos ou em condomínios residenciais de ex-presidentes condenados.
Que a religião tenha penetrado nas células do corpo político, até aí nada de muito novo.
Mas não dava pra deixar o futebol de lado?
A liberdade de manifestação, mesmo que para as mais infantis das crenças (em termos civilizacionais), deve ser tratada como sagrada. Mas o zagueiro ou o goleador do time que levanta os braços para o celestial a cada oportunidade que as câmeras de transmissão lhe oferecem, o que está fazendo é proselitismo contrabandeado, obrigando o torcedor a se submeter à sua fé pela genialidade do seu talento. Caso contrário, se verá subtraído do espetáculo pelo qual está no estádio ou em frente à televisão – sem a autorização ou a bênção divina, nada de espetáculo.
É esse o momento no qual uma simples manifestação de fé se transforma em ato político autoritário.
*
Em uma das cenas do documentário Eis os Delírios do Mundo Conectado (Lo and Behold: Reveries of the Connected World, Werner Herzog, 2016), um Elon Musk angelicalmente civilizado, mui gentilmente concede uma entrevista sentado a uma mesa de trabalho da sua já bilionária empresa de pesquisas espaciais, a SpaceX.
Herzog o apresenta assim: “Ele fez fortuna com o PayPal, está fazendo carros elétricos e agora está construindo a maior fábrica de baterias do planeta”.
Um Musk que evidentemente ainda não era Musk.
É espantosa a diferença – de feições, da maneira de falar e se apresentar etc – entre o entrevistado e aquele personagem que menos de uma década depois já terá se tornado O Homem Mais Rico do Mundo, trabalhado em primeiríssimo plano para a eleição do Homem Mais Poderoso do Planeta e, poucos meses após a posse do vitorioso, rompido com Ele num affair de grandes proporções.
No momento daquela entrevista, Elon Musk estava entre os 90 e os 100 maiores bilionários no ranking da Forbes, com uma fortuna estimada entre 12 e 14 bilhões de dólares, a Tesla ainda era deficitária, a SpaceX apenas começava a se consolidar e Musk “era considerado um visionário excêntrico”. Embora já recebesse alguma atenção midiática, não tinha alcançado ainda o papel de protagonista no mundo do capital.
*
Fora do círculo de especialistas, Tim Berners-Lee é um absoluto desconhecido. Mas este é o nome do sujeito que em 1989, trabalhando no CERN da Suíça, criou o que hoje conhecemos como a Internet, a rede mundial de computadores, sem a qual a vida contemporânea parece não ter mais sentido.
Aqui, o que certamente soará espantoso é que Berners-Lee não tenha se tornado um bilionário como o dono do Facebook ou os fundadores do Google – também eles figuras centrais do capitalismo mundial.
O criador da web segue sendo um modesto professor do renomado MIT. Isso porque ao criar a rede, Berners-Lee decidiu não patentear nem cobrar royalties por sua invenção.
Quis que ela continuasse pública e gratuita.
*
Finalmente, após dois anos de ininterruptos ataques indiscriminados de Israel contra a população da Faixa de Gaza, um saldo de pelo menos 65 mil civis mortos e frente à ofensiva final dos soldados de Netanyahu para a ferro e fogo tomar a Cidade de Gaza, a sra. Ursula von der Leyen (presidente da Comissão Europeia) anuncia que tomará medidas enérgicas e “aprovará a suspensão parcial (sic) do acordo comercial com Israel”. Como escreve o El País em tom celebratório, “a medida é a mais dura adotada pelas instituições europeias” desde o início do genocídio – pura, e espantosa, verdade.
*
Os donos do poder (e do capital) apelam e exigem que sejamos pacíficos, sensatos, equilibrados, respeitadores das leis e dos contratos. Igualando os extremos para além dos seus conteúdos específicos (esquerda ou direita), que escapemos da sua tentação, nos ameaçando se apenas sonhamos em manifestar nossas mais agudas repulsas. A eles, e unicamente a eles, estará reservado o cometimento de todas as desmedidas, de todas as extravagâncias, de todos os excessos: o acúmulo de riquezas materiais inimagináveis e a perpetração das guerras e morticínios.
P.S.: Após os últimos ataques israelenses, a Cidade de Gaza ficou (e continua) muda, conexão de Internet.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “As declarações de Lula e a prática de governo”, de Paulo Kliass.