
O grande e antigo ventilador parece fazer mais barulho do que vento. O nheco nheco das engrenagens se maltratando preenchiam o ambiente como se fosse a bateria de uma escola de samba marcando o ritmo. Marcelo lutava contra o vento que ameaçava lhe levar os papéis da mesa. “Melhor isso do que o calor…”, pensou. Suava em bicas. A ventarola era insuficiente para fazer daquele escritório um lugar agradável.
Quando era criança a cidade era fria. Havia calor no verão, mais alegrador do que aquecedor. Corria para o Ribeirão das Almas só de sunga e se lançava sobre suas águas do parapeito da Ponte Eleutéria. Algumas pessoas se aglomeravam nas margens para se bronzear. Naquele tempo, não se falava em câncer de pele. Nem de poluição do rio. A natureza era boa. Era diversão. Era coisa de fim de semana. Era vida.
Aquele mundo se foi com sua infância. Nada por lá é mais o mesmo. A Ponte Eleutéria ainda esta lá, malcuidada, despintada, com concreto esfarelante e ferrugem aparente. A prefeitura não tem dinheiro. Nunca tem verba. Nunca tem tempo. E a burocracia é grande demais mesmo para as coisas pequenas demais.
Um dia a ponte vai cair e ninguém vai ligar. O Ribeirão das Almas que ela transpunha não é mais um ribeirão. Não é nem rio. Nem riacho. Virou uma vala com mato e um filete de água podre. Só volta a lembrar o antigo ribeirão quando chove muito e o outrora leito se enche de água lamacenta que leva o lixo que suja ruas e margens para sujar outras naturezas enxurrada abaixo.
O rio foi se acabando junto com as matas. Cortaram as árvores para fazer pasto, construções ou só para fazer bonito, já que bonito naquele tempo era terra limpa de mata. Terra trabalhada na enxada e não a terra natural, do jeito que Deus a fez, cheia de árvore e bicho. Árvore era coisa de se cortar. Bicho, coisa de se matar. E Deus deixou a natureza para se abrigar na igreja. Só na igreja.
No jornal velho guardado no cesto de vime mais por preguiça do que por zelo, leu “aquecimento global”. Lê e ouve isso há tanto tempo! Tanto cientista alertando, descrevendo, apontando, estimando. Todos falando que a vida está em risco, que a natureza está em risco. Tanta gente, por tanto tempo, que não é possível que ninguém se mexa para fazer nada.
É tanta inação, tanta despreocupação, que Marcelo chega a pensar se o pessoal que diz que não há aquecimento global talvez não tenha razão. Os cientistas não entenderiam nada do assunto. Quem entenderia mesmo seria gente como Seu João Neponuceno, escriturário, Zé Biriba do açougue ou Dona Margarida, cozinheira de mão cheia.
É, talvez o problema não seja do jeito que os cientistas dizem. Talvez o problema seja Deus. Quando Deus estava em todo lugar, todo lugar era sagrado. Jogar lixo na rua não poderia porque a rua seria sagrada. Cortar árvore e matar bicho seria heresia. O Ribeirão seria lugar de se rezar e não de se sujar e poluir. Mas Deus foi para a igreja e sagrado virou só o espaço da igreja. Só se reza lá. Só se pensa em Deus lá. Como se Deus tivesse feito a igreja e não a natureza.
Secou o suor da testa com a manga da camisa, já encharcada das enxugadas anteriores. Abriu a janela em busca de algum ar fresco, mas só recebeu no rosto o bafo quente e malcheiroso das ruas cheias de gente preocupada com dinheiro, com o prazer dos outros e nem aí para a natureza e para a vida.
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Ilustração: Mihai Cauli
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