Argentina campeã do mundo: uma análise da economia política do futebol
Argentina é tricampeã do mundo. O título é no futebol profissional masculino, mas a simbologia e o fenômeno da cultura popular latino-americana é, muitas vezes, maior do que o jogo.
Escrevo estas linhas poucas horas após a vitória da Argentina contra a França, nos pênaltis. Foi 2 a 2 no tempo regulamentar, 1 a 1 na prorrogação e depois as defesas de Emiliano “Dibu” Martínez fizeram a diferença.
Não me atrevo a analisar o jogo em si, já que temos centenas de colegas jornalistas especializados na área e muito capacitados. Tampouco é esse o propósito deste artigo. Reconheço que é difícil se concentrar neste momento, pois muito devemos à crônica esportiva e ao jornalismo esportivo em geral. Como alguém que tem sua vocação apaixonada pelo ofício de escrever profissionalmente diretamente ligada aos operários das palavras, deixo aqui uma singela homenagem aos colegas e referentes do Brasil e da América Latina, em especial do Cone Sul de nosso mundo. Nas figuras de João Saldanha (1917-1990) e do imortal Víctor Hugo Morales, homenageio a quem cresceu ouvindo rádio esportivo e lendo os relatos por escrito. Ambos “son casi argentinos y medio uruguayos”, assim como este analista.
A perda nos fatores de trocas e a transnacionalização do futebol profissional
Entrando no tema de fundo, a primeira constatação é observar as relações internacionais desiguais e assimétricas através do desporto profissional. A Argentina, o país que recebeu a milhões de imigrantes entre o último quarto do século XIX e o primeiro quarto do XX, se dedica – infelizmente – a exportar cérebros e mão de obra em todos os níveis, incluindo a saída de jovens jogadores de futebol. Tanto o goleiro já citado quanto o melhor do mundo, Lionel Messi, saíram de casa e de seus clubes de base ainda quando eram menores de idade. Esta tem sido a regra, cada vez mais globalizada.
Nas Copas do Mundo após a Segunda Guerra Mundial tínhamos as evidências do confronto entre as escolas de futebol: a europeia e a sul-americana. Por obra e graça da culturalização, massas de trabalhadores e os oprimidos do sul do mundo entronizaram o futebol como prática sócio-desportiva já a partir dos anos 1920. Com o desenvolvimento pioneiro da Celeste Olímpica, a seleção do Uruguai ganhou as Olimpíadas de 1924 e 1928 e também sediou e venceu o primeiro campeonato mundial de 1930 em Montevidéu, transformando a América Latina em pólo do esporte mais popular do planeta. Nossos países entraram na década de 30 do século XX abrindo mão da sina agro-exportadora, convertendo excedentes, substituindo importações em produção industrial e buscando seus caminhos soberanos no Sistema Internacional entre guerras.
A Guerra Fria, a etapa da Bipolaridade, viu a sequência desta rivalidade entre europeus e sul-americanos e o desenvolvimento do futebol como produto pleno da indústria cultural sul-americana. Não se pode pensar a modernidade da América Latina sem a crônica esportiva, igualmente é inimaginável uma Argentina sem a “beatificação” de Diego Armando e agora Lionel Andrés. A partir da década de 1980, a “exportação” de jogadores já maduros para clubes europeus ia se acentuando, mas ainda com alguma capacidade de rivalizar dentro de campo.
A década de 1990 e a chegada dos canais por assinatura – a maior parte deles de origem estadunidense – ampliaram a mundialização das cadeias de valor e a presença de marcas esportivas transnacionais. Não por coincidência, a presença mundial da FIFA acompanha a expansão de uma empresa de roupa e acessórios desportivos. Desde a década de 1970 e com a troca de comando na contestada autoridade mundial do futebol, a ampliação das seleções no Mundial acompanhava a independência e a soberania dos países recém libertos do último ciclo imperialista, e todas as mazelas e acusações de corrupção dentre os dirigentes máximos do jogo mais popular do planeta.
O século XXI começa promissor com o poder ampliado dos países emergentes, a ascensão dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e Àfrica do Sul) e duas Copas sediadas no sul global. Tudo dava a entender que a América Latina finalmente iria buscar rumos soberanos, e com o “boom” das commodities, teríamos a capacidade de converter novamente excedentes, e fazer uma revolução científico-tecnológica à altura de nossas potencialidades. Desta forma, poderíamos inverter o ciclo de concentração no futebol profissional, parar de enviar jovens como promessas para “academias profissionais de clubes empresa europeus” e valorar marcas latino-americanas. Ocorreu tudo ao contrário, dentro e fora de campo.
Poderíamos traçar um argumento do subdesenvolvimento desigual e combinado, agregando as linhas da Cepal, da Teoria da Dependência (com base na obra de Enzo Falletto auxiliado por FHC) e a versão mais dura, com a matriz de Ruy Mauro Marini e Theotonio dos Santos. Tivemos perda na capacidade industrial, o fator interno como aliado estratégico imperialista e a exportação de capital e perda de valor nos fatores de troca. Em termos futebolísticos, a primarização avançou muito. Jovens assinando contratos ainda adolescentes ou sendo vendidos com menos de vinte anos e apenas uma ou duas temporadas nos elencos profissionais. Nas ruas argentinas, brasileiras e de outros países latino-americanos, nossas crianças usam camisetas de seleções mundiais vestidas com marcas de clubes-empresas europeus, muitas das vezes financiadas por fundos de investimento. Logo, o “clube nacional” em escala mundo passa a ser a seleção nacional.
As dificuldades só aumentaram. Desde 2002 – portanto vinte anos – uma seleção sul-americana não ganhava uma Copa do Mundo. O Brasil venceu a competição realizada em conjunto com a Coreia e o Japão; em 2006 a final foi Itália e França (vitória italiana); em 2010 Espanha e Holanda (vitória espanhola); 2014 Alemanha e Argentina (vitória alemã) e 2018 França e Croácia (vitória francesa). Uma geração inteira quase normalizando a dependência e a subalternidade como forma de vida.
Argentina campeã, América Latina representada
É muito relevante observar o passado colonial no presente da seleção francesa e o orgulho pan-arabista em defesa da Palestina nas escolhas dos jogadores do Marrocos. Sem dúvida é o tema de fundo a ser analisado e será objeto de artigo futuro. No que toca à América Latina, é quase impossível competir contra as estruturas de base europeias, incluindo as “academias de futebol” das federações nacionais, como o exemplo da França e da Inglaterra.
Se nossos futebolistas adolescentes saem cada vez mais cedo para o exterior, a periferia da própria Europa fornece os talentos e a popularização desportiva necessárias para garantir o fluxo de formação de jogadores. Logo, há cada vez mais concorrência e fluxo de recursos. É certo que as populações imigrantes e marginalizadas se veem representadas nas seleções francesa, holandesa, belga, portuguesa, inglesa e um pouco menos na espanhola. Mas a concentração de capital da UEFA torna o futebol cada vez mais desigual em termo de clubes e, graças à Argentina – por sua postura em campo e da comissão técnica –, o ciclo de subalternidade foi interrompido.
Observação final: a extrema direita francesa – racista, xenófoba, islamofóbica e anti-árabe – sempre torce contra sua própria seleção. Na América Latina, a alegria do povo é sintoma de ódio e desprezo pelas maiorias, típicas das elites dirigentes subalternas. O mínimo que se pede a atletas profissionais dos países latino-americanos é que deixem tudo em campo, sabendo que as estruturas de poder das sociedades não mudam por uma partida de futebol. Já o estado de ânimo e o sentido de pertencimento sim. (Publicado originalmente no Sul 21 em 20/12/2022)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
NR: Sobre futebol e política vale assistir “The english game” , minisérie da Netflix, e o artigo “Baila Marrocos“, de Gustavo Simi.