Aproximadamente 70% dos homicídios no Brasil são cometidos com arma de fogo. Não existe dúvida entre os cientistas de que existe uma associação positiva entre prevalência de arma de fogo e taxa de homicídio. Entretanto, medir de forma robusta o efeito causal das armas de fogo sobre o homicídio é uma questão metodologicamente bastante complexa.

Existem vários desafios nesse caminho. O primeiro se refere a como isolar uma possível causalidade reversa, pois ao mesmo tempo em que mais armas impactam positivamente a violência letal, o aumento da taxa de homicídio pode aumentar a demanda por armas. Outro desafio é ter uma boa medida para a variação espacial ou temporal da prevalência de arma de fogo, porque em geral, não apenas no Brasil, não existem registros confiáveis de armas de fogo com horizonte longo de tempo. Além disso, as pesquisas domiciliares sobre posse de arma de fogo são raras, caras e não são representativas no nível estadual ou municipal. Para complicar, em muitos países, a maior parte das armas de fogo em circulação é ilegal.

Varias medidas indiretas (proxies) para medir essa prevalência já foram utilizadas na literatura científica, por exemplo: taxas de registro de armas, de licença para posse de arma, de notificação de roubos de arma, de subscrição de revistas sobre armas e de membros da Associação Nacional de Rifles da América (NRA).

O consenso científico indica que a proporção de suicídios cometidos com arma de fogo seria a melhor proxy, pois é a que possui maior correlação com a proporção de domicílios com ao menos uma arma de fogo estimada a partir de pesquisas domiciliares dos EUA. A intuição é que quanto mais acessível for, maior é a probabilidade de ser utilizada por um suicida. Logo, as localidades com valores mais altos dessa proxy, seriam aquelas com taxas de prevalências de arma de fogo mais altas.

Daniel Cerqueira (IPEA), com dados brasileiros, e John J. Donohue III (Escola de Direito de Stanford e um dos principais pesquisadores em Economia do Crime), com dados dos EUA, utilizaram essa proxy para comprovar que uma maior facilidade de acesso à arma de fogo impacta positivamente a taxa de homicídio.

Entretanto, essa proxy possui algumas fragilidades. Locais pouco populosos tendem a possuir um número pequeno de suicídios em termos absolutos, logo, uma alteração pequena do número de suicídios pode gerar uma grande variação na proporção dos suicídios com arma de fogo.

Visando mitigar esse problema, recentemente Cerqueira, Donohue, Marcelo Fernandes da FGV/SP e Jony Pinto Jr. da UFF e eu publicamos dois artigos propondo uma nova medida indireta para a prevalência de arma de fogo, usando informações sobre as características pessoais das vítimas, disponíveis nas bases de dados de mortalidade, geralmente desprezadas pelos pesquisadores.

Nossa metodologia propõe mapear a prevalência de arma de fogo a partir de microdados de suicídio, ao estimar um modelo estatístico sobre a decisão de se cometer suicídio usando arma de fogo, controlando pelas características pessoais das vítimas. A nova proxy seriam as estimativas dos efeitos fixos dos locais de residência das vítimas. Segue uma intuição para essa abordagem: é fato que as adolescentes são menos propensas do que os homens adultos a usar arma para cometer suicídio. Consequentemente, uma grande proporção delas usando armas para cometer suicídio indicaria uma maior disponibilidade de armas nesse local. A ideia é que essa anomalia seja capturada pela nova proxy.

Para mapear a prevalência de armas de fogo no Brasil, utilizamos os microdados de suicídio do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/DATASUS). Esse sistema disponibiliza informações sobre o município de residência, idade, sexo, raça/cor, estado civil, ocupação e anos de escolaridade de cada vítima de suicídio.

As estimativas do modelo estatístico revelaram alguns aspectos interessantes. Primeiro, a probabilidade de se cometer um suicídio com uma arma aumenta após a idade legal para possuir uma arma, aos 25 anos, e depois diminui já em idades mais maduras. Vimos também que as vítimas de suicídio em ocupações que têm acesso legal a armas de fogo são muito mais propensas a usar uma arma para tirar a própria vida. Constatamos que homens brancos são, de longe, a grande maioria das vítimas de suicídio por arma de fogo. Ainda, verificamos que vítimas solteiras são menos propensas a usar uma arma de fogo do que indivíduos que tiveram um parceiro estável em algum momento. Finalmente, quanto maior a escolaridade, maiores as chances de usar uma arma de fogo para a violência autoinfligida.

Em relação à distribuição espacial da prevalência de arma de fogo, a proxy revelou que ela é maior nas regiões de fronteira com o Paraguai, Colômbia e Bolívia, onde o crime organizado trafica drogas ilícitas e armas de fogo para o Brasil. A disponibilidade de armas também é alta na Amazônia, onde os conflitos são comuns devido à disputa de terras e exploração ilegal de recursos naturais. A prevalência de armas de fogo também é alta nas microrregiões do Rio Grande do Sul.

O nosso primeiro artigo “Guns and suicides” foi escolhido pelo editor da The American Statistician para ser apresentado em uma sessão especial do 2019 Joint Statistical Meetings (principal congresso de estatística da América do Norte) como sendo um dos cinco melhores publicados no ano anterior na revista. No segundo artigo, “A panel-based proxy for gun prevalence in US and Mexico”, iniciado quando fui fazer o pós-doutorado na Universidade de Stanford em 2019, utilizamos os dados dos EUA para comprovar empiricamente as vantagens dessa nova abordagem.

Neste artigo, publicado esse ano na International Review of Law and Economics, comprovamos a superioridade dela em relação à tradicional (a proporção de suicídios com arma de fogo). Essa validação só foi possível porque nos EUA existem pesquisas domiciliares representativas no nível estadual das quais constam no questionário perguntas sobre se existe arma de fogo no domicílio.

O teste de validação consistiu em comparar as correlações das duas proxies em relação à proporção de domicílios com a arma de fogo. Elas foram calculadas para vários anos e em todos os anos, a correlação da nova proxy foi superior ao da tradicional. Por fim, utilizamos a metodologia para fazer o primeiro mapeamento da prevalência de arma de fogo entre os estados mexicanos. Assim como no Brasil, o México não possui pesquisas domiciliares de âmbito nacional com questões sobre arma.

A repercussão alcançada por essa pesquisa superou as minhas expectativas iniciais, pois conseguiu despertar o interesse da comunidade acadêmica americana, mesmo sendo um assunto já tão profundamente estudado por eles. Espero que ela contribua para avançarmos mais no conhecimento científico sobre os efeitos maléficos da difusão de armas de fogo na sociedade.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

ilustração: Mihai Cauli e Maria Eduarda de Melo e Souza Revisão: Celia Bartone
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