Márcia está atrasada. “Cadê as chaves?”. Já virou e revirou, bagunçando ainda mais a bagunça da casa. Olhou até na geladeira e nada das chaves. “Como vou sair sem as chaves?”. Para tudo na vida há uma chave. Para entrar ou sair, prender e soltar é preciso chaves. Há quem venda chaves da casa própria, do carro novo, chaves da conquista amorosa e do sucesso financeiro. Só não há quem ajude Márcia a achar suas chaves.

No atropelo da procura, lembrou dos documentos. Já os ia esquecendo. “Onde estão?”. Mais vira e revira desajeitado. Márcia é, por natureza, meio estabanada. Atrasada, torna-se completamente estabanada. No desajeito apressado, topou com a canela no mármore da quina da mesa de centro.

Sentou-se para tentar aliviar a dor esfregando a mão na canela. Respirou fundo e olhou em volta. Nada das chaves, nada dos documentos e a canela doía. “Vai ficar roxo…”. No suspiro dolorido, percebeu que muita coisa na sua vida estava desaparecendo. Ou estava perdida de um jeito que não encontrava de jeito nenhum.

Perdeu sua dignidade há muito tempo, quando começou ainda bem novinha a fazer um estágio. Assediada, subestimada, maltratada até. Tinha o sonho de ser respeitada mais pelas suas ideias e habilidades do que pela sua bunda.

Esperava que houvesse justiça e que coisas assim não aconteceriam ou, acontecendo, não ficariam impunes. Nem que fosse por uma advertência ou má fama de quem reduz uma mulher a um pedaço de carne a ser usado e abusado. Mas sempre que tocava no assunto com homens ou outras mulheres, o conselho era sempre o mesmo: silêncio. “As coisas são assim mesmo”. “Não vai adiantar denunciar”. “É só ficar na sua que isso passa”. “Pense na sua carreira”.

Márcia pensou nas coisas, na carreira, na injustiça e calou-se. Nestas e em tantas outras vezes. E a cada silêncio, algo se perdia dentro dela. Perdida na bagunça de si mesma. “Talvez, eu tenha perdido as chaves de mim mesma… Onde estão minhas chaves?”.

A canela ainda doía. Não sabia dizer o que era pior, a angústia ou a contusão. Ao menos, a contusão a lembrava de que estava ali, apesar de não saber das chaves, estava viva porque sentia. Ainda haveria algo de Márcia dentro dela porque havia dor no corpo. “Então a vida virou isso? Sentir-se viva virou isso, sentir dor?”.

Consolou-se por um momento pensando que não estava sozinha. “O mundo inteiro parece perdido de si mesmo”. Nas notícias e conversas, fala-se.do mundo como se ele não existisse. Como se nada coletivo existisse. É o governo do fulano, o deputado ciclano, o ditador não sei quem e nunca o país, o Estado, o parlamento. Tudo coisas de indivíduos. Feita por e para interesses individuais. O coletivo é só uma massa de gente que gente poderosa vê como coisa indiferente ou como pedaços de carne ou como uma bunda bonita, nada mais.

Não sabia dizer se o mundo perdeu suas chaves ou se, ao contrário, alguém as achou e as virou. “Virou a chave do mundo…”. Mais lhe parecia que estas chaves trancavam monstros de toda ordem. Monstros que sempre estiveram dentro de nós e que nunca deveriam sair. Mas alguém virou as chaves e os libertou. Hipócritas, cínicos, arrogantes, narcisistas, nazistas, genocidas. Todos soltos e mal disfarçados de gente decente. Ladrões travestidos de parlamentares, traidores fantasiados de patriotas, tiranos dissimulados de democratas. Ou até sem adornos, despudorados, pelados, de caráter à amostra neste mundo sem chaves.

A canela inchou. Ainda não sabia das chaves. Nem dos documentos. Nem de si mesma. Nem deste país. “Cadê minhas chaves… Cadê as chaves disso tudo?”.

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Ilustração: Mihai Cauli 
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