O ano de 2020 foi especialmente duro para quase cem por cento da população brasileira. A discussão do começo do ano era para caracterizar a crise como fundamentalmente sanitária ou econômica. Ao longo do ano foi ficando claro que era uma crise sanitária e econômica, com muitas outras dimensões.

A crise sanitária se agravou, principalmente porque as forças políticas hegemônicas no governo federal tentaram deslocar o debate científico, e passaram a discutir o problema como se fosse uma questão ideológica, com discursos repletos de adjetivos, subjetividades, verborragia e fake news.

No campo da crise econômica, as medidas tomadas desde o governo Temer – como flexibilização trabalhista e a Emenda Constitucional 95, conhecida como Lei de Teto de Gastos – foram aprofundadas no governo Bolsonaro com a reforma da Previdência.

Vários instrumentos que poderiam ter ajudado a atenuar os problemas das crises deixaram de existir. A flexibilização trabalhista retirava defesas com as quais os trabalhadores contavam antes, especialmente o enfraquecimento dos sindicatos, que no passado era a principal arma pela defesa dos interesses dos trabalhadores.

A Lei de Teto de Gastos, por outro lado, limitou a quase nada a capacidade de investimento do Estado, justo no momento que deveria desempenhar seu papel como um elemento anticíclico. A reforma da Previdência colaborou por tornar o quadro ainda mais grave. Ao adiar a possibilidade de aposentadoria para uma parcela da população, principalmente a dos trabalhadores idosos, os deixou ainda mais vulneráveis à exposição da pandemia, mais dependentes do auxílio emergencial e das redes de solidariedade que foram sendo montadas com a crise.

O que vimos foi a transformação em números da tragédia anunciada. Crescimento do desemprego e da pobreza, concentração da renda, mortes entre os trabalhadores mais idosos.

A taxa de desemprego medida pela PNAD, considerando o quarto trimestre, mostrou uma trajetória ascendente de 2014 a 2019. De 6,5%, em 2014, passou para 8,9% em 2015, pulou para 12% em 2016, 11,8% (2017), 11,6% (2018) e 11% (2019). No primeiro trimestre de 2020, portanto, antes do início da pandemia, o desemprego era de 12,2%. Foi com este desemprego elevado que o país ingressou na crise pandêmica.

Na segunda quinzena de setembro de 2020, o IBGE divulgou a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), que mostra números sobre o avanço da insegurança alimentar no país. O levantamento mostra que entre junho de 2017 e julho de 2018, a fome atingiu cerca de 5% da população, trazendo o Brasil de volta ao mapa da fome, com a insegurança alimentar grave presente para 10,3 milhões de pessoas, sem incluir as pessoas na condição de população de rua.

O quadro social é dramático e só não é pior porque o Congresso Nacional aprovou o auxílio-emergencial de R$ 600,00, bem superior à proposta inicial (R$ 200,00) do Governo Federal. Esse auxílio estará se extinguindo até o final do ano (já foi reduzido à metade), e se depender do governo, não continuará no ano que vem, embora haja um movimento das centrais sindicais para mantê-lo. Portanto, o desemprego deve seguir elevado, os salários baixos e a economia com pouco dinamismo. A recessão será funda nesse ano, e não é de se esperar, exceto por algum efeito estatístico, nada de particularmente impactante no ano que vem.

Há os que ainda apontam possibilidades de ampliação das políticas sociais e do aumento de gasto público por uma questão eleitoral para 2022. Neste sentido, existe uma possibilidade de que a percepção do aumento da popularidade do governo, especialmente entre os mais pobres, com o auxílio emergencial, possa se refletir na montagem de alguma política de garantia mínima de renda com impacto eleitoral.

A própria composição parlamentar do governo, expressa no período recente pela aproximação com setores do chamado “Centrão” da política brasileira, deve resultar em alguma discussão adicional sobre aumento do investimento público. E não deve ter passado desapercebido para o governo o efeito eleitoral de abrir algum espaço fiscal para os níveis subnacionais esse ano, por conta da pandemia.

Por isso, 2021 chega carregado de incertezas. O mais provável é que, dada a situação de pouco dinamismo econômico, a via crucis social persista, e não tenhamos ganhos significativos do ponto de vista social no país no ano que vem. Mas sempre podemos ser surpreendidos pela realidade e pela antecipação de fato do processo eleitoral. Afinal, na expressão “política econômica”, o substantivo é a política.