
A esquerda argentina, mais uma vez, não conseguiu superar o sectarismo e diferenciar La Libertad Avanza e Milei dos candidatos peronistas. Como durante décadas, a esquerda continua apenas uma testemunha dos acontecimentos.
Em 26 de outubro passado, o partido de ultradireita que governa a Argentina, La Libertad Avanza, obteve uma série de vitórias surpreendentes nas eleições legislativas de meio de mandato.
Os dois primeiros anos do governo de Milei não trouxeram nenhuma boa notícia para a maior parte dos argentinos. Nos dias anteriores à eleição, as pesquisas registravam sistematicamente uma queda vertiginosa da imagem de seus integrantes e candidatos; uma série de escândalos de corrupção e vínculos com o narcotráfico havia golpeado o centro do sistema mileísta; e, em 7 de setembro, em uma eleição provincial crucial (a da província de Buenos Aires, que abrange 40% do eleitorado), o peronismo havia obtido 47% dos votos, com uma diferença de 15 pontos percentuais sobre a La Libertad Avanza (LLA).
Mas, quando terminou a contagem dos votos, a maioria (quase a totalidade) das empresas de pesquisa descobriu que suas previsões haviam falhado, e Javier Milei, o presidente da Nação, celebrou o resultado da eleição como um respaldo definitivo à sua política.
A ingerência americana
Quando os resultados foram estudados mais cuidadosamente, foi possível chegar, contudo, a duas conclusões que colocaram aquela euforia ultradireitista em seu devido lugar:
- os votos da LLA não haviam superado o percentual normal do voto conservador na Argentina nesse tipo de eleição (40%); e
- esse resultado não teria sido possível sem o resgate extorsivo de última hora que Milei obteve – a um preço ainda desconhecido, mas que sem dúvida será altíssimo em termos de soberania nacional – do governo norte-americano de Donald Trump.
Trump, numa intervenção absolutamente insólita, chegou a advertir os argentinos de que, se o partido de Milei não vencesse, ele retiraria todo o apoio a um plano econômico que não pode funcionar sem um endividamento permanente em dólares. Em outras palavras, advertiu o país de que, se votasse “mal”, na segunda-feira seguinte às eleições a Argentina amanheceria mergulhada no caos econômico decorrente de uma imediata e brutal desvalorização.
Dessa forma, as eleições não se deram entre a La Libertad Avanza e a oposição a Milei, mas entre os Estados Unidos e aqueles que sofrem as consequências das políticas econômicas, sociais, institucionais e culturais de um regime semibárbaro do grande capital financeiro, que Milei encabeça apenas formalmente.
Submetido a tamanha extorsão, um eleitorado que já havia sofrido décadas de estagnação, inflação rastejante e hiperinflações, crises profundas de todo tipo e até a ruptura de um regime de câmbio fixo e baixo – que custou 39 mortos nas ruas e a queda de um governo em 2001 – optou pelo mal menor e votou no partido da Casa Branca para, ao menos, adiar a inevitável explosão do atual esquema de dólar barato com endividamento externo permanente.
O desarranjo da oposição
O outro elemento a se considerar para compreender o triunfo de Milei e de sua força em 26 de outubro é, talvez, o mais importante (especialmente por suas consequências): a oposição a Milei – composta, sobretudo, pelo peronismo e, de forma bastante secundária, pelo que se define como “esquerda” na Argentina – não apresentou uma alternativa palpável ao programa monotemático que Milei impôs desde sua chegada ao governo: baixar a inflação a qualquer custo e supervalorizar artificialmente o peso para garantir essa queda com uma âncora cambial.
É claro que o custo desse programa inviável está sendo pago pelos mais humildes e pelo Estado, que vem sendo submetido a uma espantosa mutilação, a qual certamente se aprofundará nos próximos dois anos e terá gravíssimas consequências futuras, além das já existentes nas áreas da saúde, educação, previdência, assistência social e científica-tecnológica.
O peronismo, que atravessa uma longuíssima crise de liderança, não parece estar em condições de apresentar ainda essa alternativa sem se despedaçar. A unidade peronista, por ora, depende de não traçar um rumo programático concreto, no qual se definam ganhadores e perdedores em um programa de reconstrução nacional (que será imprescindível após o inevitável fracasso da ilusão mileísta).
Às contradições entre os diversos pontos de vista das múltiplas camadas sociais que o peronismo representa somam-se as pressões dos diferentes peronismos provinciais, alguns propensos a negociar isoladamente verbas orçamentárias com o governo central em troca do voto de seus legisladores no Congresso Nacional em projetos-chave. Desde a Constituição neoliberal de 1994, ademais, os governadores provinciais detêm o controle dos recursos naturais de “suas” províncias, o que estimula tendências centrífugas nas quais cada governo local busca obter por conta própria investimentos em mineração ou hidrocarbonetos.
Por fim, é preciso acrescentar, num contexto de crescimento do desemprego, desmobilização causada pelo medo da perda do emprego e descrença das novas gerações, as dificuldades da mítica “coluna vertebral do movimento” – o sindicalismo agrupado basicamente na Confederação Geral do Trabalho (CGT) e nas duas Centrais de Trabalhadores Argentinos (CTA e CTA-T).
O peronismo não apresentou um programa alternativo ao de Milei. Limitou-se a propor “Frear Milei” e a recordar os bons tempos do passado. Não conseguiu desconstruir a campanha da direita que o associa à inflação e ao “fracasso” nacional, ficando reduzido ao seu núcleo duro de eleitores.
Embora na Província de Buenos Aires não tenha perdido votos – o que garantiu que ali Milei obtivesse, no máximo, um virtual empate, com uma diferença mínima a seu favor – também não conseguiu atrair eleitores fora desse núcleo duro, os quais acabaram apoiando o programa em curso, empurrados pelo medo da “segunda-feira negra” pós-eleitoral. Seria demasiado extenso analisar o que ocorreu com o voto nos outros 23 distritos do país.
A falta de um programa opositor não afetou apenas o peronismo. Os partidos que se autodefinem como de esquerda tampouco apresentaram propostas viáveis capazes de seduzir não apenas os eleitores peronistas, mas também a grande massa de cidadãos que – em um país onde, teoricamente, o voto é obrigatório e sempre teve altos níveis de participação – deixaram de votar. A quantidade de eleitores que não compareceram às urnas foi muito elevada: 36%.
A esquerda, na Argentina, não consegue – salvo em casos pontuais de lutas restritas e parciais – ocupar o seu lugar. Em todas as alternativas-chave, e isso voltou a demonstrar-se nesta eleição, distancia-se rigidamente do peronismo, considerando suas divergências com as demais forças como meras “disputas interburguesas”. Desse modo, como é habitual, conseguiu apenas eleger uma deputada, Myriam Bregman.
Essa resistência em compreender a necessidade de uma frente nacional anti-imperialista como ponto de partida de qualquer política de esquerda com capacidade de superar o sectarismo ficou evidente nestas eleições legislativas, nas quais, em nenhum momento, diferenciou a La Libertad Avanza e Milei dos candidatos peronistas. Desde 1945, quando o peronismo nasceu de uma aliança de fato entre a classe trabalhadora e uma fração nacionalista das Forças Armadas, essa tática a confinou ao papel meramente testemunhal do qual não conseguiu sair.
Tradução: Eduardo Scaletsky
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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