Segundo estimativas da Bloomberg e da Forbes, o patrimônio da família Trump quase que dobrou em apenas um ano, de outubro de 2024, quando ficou claro que derrotaria a candidata democrata na disputa para a Presidência, até outubro de 2025. Frente aos 4,4 bilhões de dólares do ano passado, a riqueza dos Trump ascende agora a 7,7 bilhões. O Imperador e sua prole estão entre as 500 maiores fortunas do planeta.

Como dizia o artigo anterior, o “exercício do poder no Estado… quase sempre está associado ao poder do dinheiro. Enquanto… o Imperador comanda o espetáculo, aos seus filhos foi encarregada a tarefa de fazer crescer a já avantajada fortuna familiar”.  A se crer nas estimativas citadas, o trabalho parece estar sendo bem executado.

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O que nós, os humílimos cidadãos, podemos fazer, ou que diabos pensamos estar fazendo com nossas críticas ácidas e agudas e demolidoras contra essas figuras fenomenais que controlam impérios – de mídia, financeiros, tecnológicos, militares – capazes de entreter, influenciar e controlar milhões de almas?

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Numa das cenas de Apocalipse Now, os tripulantes do barco-patrulha que conduz o capitão Willard (Martin Sheen) abrem fogo com uma metralhadora antiaérea contra os passageiros de um barco vietnamita. Concluída a carnificina, o comandante do barco americano pede aos seus subordinados que socorram a única vítima que ainda respira. Willard se aproxima da sobrevivente e atira com frieza absoluta contra seu corpo caído. É o tiro de misericórdia. “Eu disse pra não parar. Eles só estavam tentando salvar o cachorro. […] Se quiser ajudá-los, vá em frente. Mas é como colocar um band-aid num cadáver.”

Nós somos algo como aquele band-aid, uma quase que indiscernível sombra do que restou da chamada consciência universal.

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O recém-estreado Jogo Sujo (com Mark Wahlberg) é um filme tipo parque de diversões (cada vez mais frequentes): com uma só entrada, o espectador tem acesso a um amplíssimo cardápio de brinquedos – os mais variados gêneros ofertados num único pacote. A coerência do enredo ou a sua mera existência, o eventual sentido da história, beira o zero em relevância. Ali, o que de fato importa é impedir a construção de qualquer sentido. O que interessa é sugar dos espectadores as últimas gotas de sua minguante humanidade, implodir sua capacidade de julgar e escolher – e de saber discernir o bem do mal. (A boa frase do colunista Luiz Felipe Pondé ilustra um pouco a situação: “A matriz da nossa espiritualização é a Disney” – aquela que como uma âncora nos arrasta para o vazio, poderíamos acrescentar).

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A paz deve ser celebrada.

Mas o que é essa paz pactada entre Israel e o já praticamente exterminado Hamas senão uma paz assentada num cemitério cujas vítimas estão apenas num dos lados do conflito? No território invadido por Israel não estão enterrados os cadáveres de uma guerra, mas sim de um massacre – e para boa parte dos que ainda têm algum senso moral no planeta, um genocídio.

O Ministério da Saúde de Gaza contabiliza 67 mil mortos desde o início da invasão, dois anos atrás – desses, aproximadamente 20 mil eram crianças (30% do total). A Faixa de Gaza está literalmente em ruínas após os imparados bombardeios israelenses. De acordo com informações publicadas pela ONU, 78% dos edifícios ao longo da Faixa “foram danificados ou destruídos”, e cerca de 98,5% do solo cultivável está também danificado ou inacessível – ou as duas coisas.

Enquanto isso, Trump, o experimentadíssimo profissional da arte do engodo, se apresenta como paladino da paz mundial – e Netanyahu, o senhor da guerra, o declara como “o melhor amigo que o Estado de Israel já teve na Casa Branca”. Apesar da manifesta incongruência, dá-se como aceitável a enganação.

Aqui entre nós, pode alguém levar minimamente a sério essa pantomina? E, no entanto, é o que estampam em manchetes espetaculares os jornais e os telejornais.

A coleção de registros visuais dessa encenada celebração deve entrar para a história – se no futuro ainda houver algum registro do que se chama história – como uma das mais infames de todas quantas as que existiram.

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Mas não é essa a única pantomina com que fomos brindados nas últimas semanas.

Quase tão indecente – se é que se pode quantificar a indecência – é o prêmio Nobel da Paz outorgado pelos noruegueses à ultradireitista venezuelana Maria Corina Machado. E a indecência não vem do fato de se apresentar como opositora do regime de Nicolás Maduro, mas da sua notória localização dentro do espectro político – ignorada ou escamoteada por nove de cada dez comentaristas da cena mundial.

Premiada, seu primeiro gesto é o de render homenagens a um de seus supostos concorrentes – Donald Trump.

Não será esse gesto um carimbo de autentificação do perfil da própria laureada?

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Truques mal elaborados de um roteiro ainda pior tentam, sem muito esforço, assegurar a veracidade da história. É claro que contam que haja por parte dos que a relatam, assim como pelos que a escutam, uma gigantesca predisposição para aceitar a mentira – as fábulas costuradas pelo Imperador.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Entre o porrete e a sedução do império”, de Halley Margon.