As guerras sujas de Trump, Musk – e Netanyahu

“A sociedade branca permanecia segura de si mesma
e não imaginava que sua política imperial pudesse
sofrer restrições senão dos eventualmente prejudicados.”
Luiz Costa Lima em O Redemunho do Horror

Guerra I – Fome

De novo, ao final da década de 1960, a imagem de homens, mulheres e crianças quase só pele e ossos encheu de espanto os olhos do mundo civilizado. Eram semelhantes àqueles seres esqueléticos encontrados nos então liberados campos de extermínio nazistas. A diferença estava apenas na cor da pele. Ao invés de judeus europeus, agora eram pretos africanos. A tragédia da fome em Biafra era, nas palavras de alguns, “uma das mais graves crises humanitárias do século XX” – grave crise humanitária… como somos, os humanos, pateticamente incapazes de dar nome aos crimes pelos quais somos todos responsáveis e, de alguma forma, até cúmplices! O massacre pela fome foi também uma das mais previsíveis e quase que obrigatórias consequências da exploração colonial que devastou o continente africano – não tendo sido suficientes os 13 milhões de escravos levados para o trabalho nas colônias da América para acelerar a acumulação primitiva de capital, ainda era possível sugar as últimas gotas. Assim demandava o bem-estar e a prosperidade dos brancos civilizados. Muitos de nós éramos crianças, prestes a entrar na adolescência – assim como aquelas figuras assustadoramente esquálidas estampadas nas páginas de revistas e jornais – mas as imagens ficaram para sempre gravadas nas retinas daqueles capazes ainda de sentir empatia. As estatísticas falam de quase dois milhões de mortos, crianças em sua grande maioria. Passado mais de meio século e o horror da fome provocada pelo colonialismo e usada como arma de guerra se deslocou. As vítimas agora estão em Gaza, minúsculo território destruído e ocupado pelo vizinho rico e poderoso, cercadas e acuadas por um dos mais bem equipados e treinados exércitos da história. Segundo a ONU, meio milhão de palestinos estão à beira da fome extrema. A sempre citada solidariedade internacional, essa pequena fita de band-aid colocada sobre uma artéria amputada, não foi capaz de interromper ou amenizar a dizimação do povo de Biafra. Agora, o que restou de consciência humanitária no chamado mundo próspero tampouco é capaz de fazer cessar o genocídio dos palestinos pelos guerreiros israelenses e seu comandante Benjamin Netanyahu. Dia a dia, a disputa pelo minguado (e privatizado) socorro é acompanhado de metralhas contra os desesperados à procura de comida. Numa espécie de escolha de Sofia, são colocados entre a probabilidade de morrerem de fome ou fuzilados na fila à espera dos pacotes de ajuda. Apenas na primeira semana da distribuição de comida supervisionada pelos israelenses foi de aproximadamente 130 o número de mortos, com mais de 700 feridos. É possível que algum dentre os cidadãos do Estado de Israel sobreviventes do holocausto, libertados de Auschwitz ou Treblinka, e ainda vivos, se recorde das cenas de fuzilamentos perpetrados nos campos da morte. (A ajuda aos palestinos é proporcionada pela Fundação Humanitária de Gaza, ou GHF em sua sigla em inglês, uma ONG estadunidense criada em fevereiro último. Para sua segurança e logística, a referida fundação humanitária, com sede em Delaware nos Estados Unidos, contratou duas empresas de segurança privada também com sede nos Estados Unidos – a Safe Reach Solutions, sediada em Wyoming e “liderada pelo ex-chefe de estação da CIA Philip Reilly”, e UG Solutions encarregada de “operar pontos de verificação (checkpoints) e controlar o tráfego interno de veículos em Gaza, com pelo menos 100 ex-militares contratados, armados e prontos para atuar” – será uma infame coincidência ou anedota de mau gosto que no nome de cada uma dessas empresas apareça essa palavra de tão amarga memória para o povo judeu – solução? Ambas operam, é claro, sob a coordenação direta do exército de Israel.)

Guerra II – Deportação

Quando, semanas atrás, Donald Trump anunciou com estardalhaço e a arrogância de sempre o início de sua guerra comercial contra o resto do planeta, o susto foi grande. Os editores se viram forçados a inserir em suas manchetes a marca da estupefação. Só não era absoluta a incredulidade porque daquele sujeito já se sabia que até o mais assombroso se podia esperar. Um dos mais qualificados economistas americanos classificou as medidas decretadas como “delírios de um louco” (as palavras são de Paul Krugman). As resoluções da Casa Branca soavam não apenas inéditas em sua dimensão, mas principalmente indefensáveis do ponto de vista de qualquer abordagem econômica minimamente séria, fosse qual fosse a corrente de pensamento. E como de fato não tinham nenhuma sustentação na realidade (e no quadro de relação de forças planetário) foram uma após a outra sendo recolhidas como se nunca tivessem sido mais que o discurso de um farsante durante uma encenação burlesca. Na sequência, outras medidas e novas doses de perplexidade, fosse pelo suposto ineditismo, fosse pela brutalidade, ou pelas consequências inevitáveis de sua aplicação. O Imperador (ou King, como está sendo chamado) parece estar em guerra não apenas contra o seu agora ex-parça (sim, estamos no mundo dos parças ricos, muito ricos, milionários, biliardários – e farsescos) Elon Musk, mas, e isso é o que mais interessa aqui, contra os mais fracos, estejam onde estiverem. É esse o seu verdadeiro alvo, aqueles a quem pretende acuar, prender – fazer desaparecer. Não seus coleguinhas de berço dourado.

Guerra III – Demonização

“Los Angeles… não é uma mera cidade. Ao contrário, ela é, e sempre foi, desde 1888, uma mercadoria… Algo para ser anunciado e vendido… como automóveis e cigarros…”, escreveu Morno Mayo no seu livro Los Angeles (citado por Mike Davis em Cidade de Quartzo). É provável que esse comentário de Mayo, de 1933, valha, hoje, para quase todas as grandes cidades do planeta. E é justamente numa dessas cidades-mercadoria que o novo Imperador decidiu levar a cabo uma de suas guerras – quem sabe a mais importante delas. Aqui, quando o fortão se bate contra os pequenininhos, sua chance de vitória é inquestionável. E se um talento não se pode negar ao empresário Trump é o de agir para criar oportunidades e saber aproveitá-las quando aparecem. Sua guerra contra os imigrantes pobres foi rapidamente se transformando em caçada a bandos de perigosos selvagens que ameaçam a prosperidade e a paz da América. Um cartaz criado por apoiadores de Trump e divulgado pelo Departamento de Segurança dos Estados Unidos apelava aos conterrâneos: “Ajude seu País… e a você mesmo. Denuncie os invasores estrangeiros.” – abaixo do enunciado, o telefone de um órgão vinculado ao Departamento de Segurança Nacional (DHS). Pelo menos a Europa já passou por isso antes e as consequências todos conhecemos – não que os americanos sejam virgens no assunto. E no domingo, 8 de junho, “um helicóptero das forças de ordem sobrevoou a multidão (que protestava nas ruas do centro de Los Angeles), anunciando: ‘Temos todos vocês gravados em câmera. Vamos até suas casas.’” (Jamil Chade, no UOL, em 9 de junho). A polícia de Adolf Hitler não usou helicópteros para prometer aos judeus que iria até suas casas, até porque não havia ainda helicópteros lá pelos idos de 1930, mas a natureza da promessa era a mesma. É puro terror, ultraviolência praticada por um governante que, seja como for, encontra maneiras de fazer o que bem entende para manter o poder, incrementar sua fortuna familiar, acuar os adversários e varrer do mapa os indesejáveis – sem medir consequências para alcançar seus propósitos. Ao contrário, precisa demonstrar a cada passo a inabalável disposição de subir o tom das ameaças. A Constituição e as leis do país que o elegeu… ora, bolas, se atrapalham, às favas com elas.

Guerra IV – Sem mortos e sem feridos

E eis que o estrepitoso anúncio de guerra entre O Homem Mais Poderoso do Planeta e o Homem Mais Rico da Terra aparentemente era fogo de palha, estardalhaço provocado pelo não entendimento de que são brancos, no final se entendem – um dito popular cujos termos nunca poderiam ter sido mais bem escolhidos. Portanto, nem mortos, nem feridos em nenhuma das partes – e tampouco deportação como sugeriu um dos feiticeiros-mor do MAGA.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Anne Frank vive”, de Abrão Slavutzky.