O caso de assédio sexual à deputada Isa Penna (PSol-SP) no Plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo, diante de várias testemunhas e de câmeras, mostra um Brasil truculento, rude em sua misoginia e um racismo cultural. Naquele dia, vários deputados exibiram entre si, com malícia, um vídeo postado por ela em suas redes sociais em que ela dança funk, esta expressão da cultura popular contemporânea brasileira. Um deles, Fernando Cury, em plena sessão, achou-se liberado para tentar apalpar o seio da deputada. Se o vídeo fosse de uma dança clássica europeia, teria havido a mesma reação criminosa por parte do deputado Fernando Cury?

Desde a campanha orquestrada para o golpe de 2016, o Brasil baixou escandalosamente o seu patamar de civilidade. Não que antes disso não houvesse machismo – havia e muito, sabemos disso –, mas as cenas de arrogância e brutalidade preconceituosa passaram a ser uma pauta permanente em nossas redes sociais. A fala do então deputado Jair Bolsonaro em homenagem a um torturador e estuprador abriu a cloaca da licença para a criminalidade machista. O Brasil bem baixo estava em alta.

O machismo e o racismo não são novidades para nós. A investida brutal contra as mulheres também não é expediente novo e nem só antigo. Mas é precisamente na Era Moderna que as mulheres têm suas vidas findadas nas chamas e fel dos processos condenatórios e pedagógicos de desconstrução do patrimônio simbólico feminino, cultivado ao longo de incontáveis gerações. Depois da retomada da Península Ibérica do domínio mouro e da consolidação da aliança mercantil com os reinados cristãos absolutistas, tivemos a construção de um modelo de civilização moderna burguesa: desencantada, distante da natureza e de seus tempos cíclicos, instrumental, produtiva, soldadesca e masculinizada. Saímos das aldeias mágicas e místicas para os burgos proletários – áridos, fanáticos e puritanos.

Com o discurso de superação do obscurantismo, a burguesia – já desposada pelo Estado Absolutista – vai consolidando uma rede social e institucional responsável pela nova interpretação dos povos e de suas culturas, das mulheres e da natureza. Junto com a ideia de segurança, do desenvolvimento como novidade boa e de elevação moral, é retirado, a machadadas e a fogo, o lugar da mulher na sociedade como alguém que traz consigo uma sabedoria espiritual sobre os mistérios da vida e da morte e, por isto, conhecedora e respeitadora dos sinais e ciclos da natureza.

Nos séculos de rompimento com o poder papal, radicaliza-se a quebra da magia, sobreposta pela ascensão da Razão. Mas, contraditoriamente pouco dialógica (já que o pensamento racional se perfaz no exercício permanente da argumentação e da contra argumentação), o conhecimento aceitável era só aquele produzido por uma elite circunscrita socialmente.

Todos os saberes populares construídos pelas mulheres e pelos vários povos colonizados pela Europa Mercantil Moderna foram depreciados e até criminalizados. Podemos atestar isso ao lembrarmo-nos dos séculos dos Processos Inquisitoriais e dos Ordenamentos que tipificavam como criminosas as várias expressões das culturas profanas europeias, como os ritos resistentes da cultura celta e as culturas árabe, judaica, cigana, indígenas e africanas. Desta feita, não só a mulher foi desencantada e esvaziada em seu poder político cultural, mas, mais especificamente, as mulheres detentoras de um saber cultural foram enquadradas como figuras nocivas à sociedade, pois eram adoecidas e adoecedoras de seu meio. Não foram poucas as associações de mulheres à bruxaria e judaísmo, por exemplo, em suas condenações nos processos inquisitoriais.

Portanto, o machismo e o racismo estão profundamente ligados, por serem instrumentos de uma mesma dominação. E os desdobramentos deste posicionamento político se dão na perseguição às expressões culturais pertencentes às culturas excluídas e, especialmente, a tudo aquilo feito, criado e vivenciado cultural e artisticamente pelas mulheres.

Dentro deste quadro, é fácil compreender que o novo disciplinamento social passou e passa pela redefinição do corpo e sua ressignificação. Sabemos que na visão patriarcal o corpo da mulher não lhe pertence, pois a sua alma é pecadora e desprovida de juízo ético e cognitivo. Por isso deve ser adestrado para a passividade e a castidade. O problema é que, apesar de toda uma cultura machista – seja ela árabe, judaica, ou africana –, agrega-se a esse corpo e às suas expressões culturais o entendimento de algo desvirtuado, criminoso e pecaminoso. Um corpo que tenha esta expressividade tem cumulado em si as distorções morais, éticas e até sanitárias. O corpo cultural expressivo de uma branca é pecador, mas o corpo expressivo de uma mulher negra ou cigana, por exemplo, é muito mais desqualificado moralmente. E nesta condição de corpo imoral, mundano e pervertido deve ser punido e maculado até mais severamente que o outro.

O que tivemos como resultado desta campanha de distanciamento cultural da influência de povos árabes, ciganos ou africanos, foi também a desqualificação cultural das expressões das várias linguagens artísticas destes povos. Destaco aqui as danças e todos os seus movimentos de ventre e de quadril. Tudo passou a ser lascívia e corrupção. O grande problema disso é que as danças não nascem por uma exclusiva vontade de diversão ou de entretenimento; elas nascem por tudo isso e por uma necessidade de se aprender sobre si, sobre o espaço, sobre o tempo e sobre linguagem não verbal.

A dança e todas as artes propiciam entendimento do mundo, são criação e recriação da vida e da ludicidade. Pensando assim, podemos compreender que os movimentos da dança são riscos de liberdade dentro de um tempo compassado. Desta feita, todas as danças como expressões culturais de origem africana, oriental ou cigana, por exemplo, mesmo que desempenhadas por uma mulher branca, são a presença destas culturas no corpo de uma mulher. Ao dançar uma música e dança negra, uma mulher mesmo sendo branca “torna-se” negra e, por isso, símbolo de lascívia e desgoverno moral.

A “respeitabilidade moral” que tem a dança clássica europeia está devidamente relacionada com estes fatores. Primeiro, por ser dança da Europa Central, de origem italiana e sistematização francesa. Interessante é perceber que a sistematização do balé clássico se deu na França de Descartes, este pensador que desnaturalizou o corpo, interpretando-o como uma poderosa e eficiente máquina.

Vejamos: uma máquina não tem suspiros, delírios e nem hormônios, ela simplesmente faz mecanicamente os movimentos predeterminados. As linhas e curvas do balé são matemáticas. O corpo é uma imagem não material. Ele levita, está acima da terra. Tal qual a arrogância racional moderna, o corpo clássico não tem sinuosidade, mas sim ângulos e círculos perfeitos. Não há ponto fora da curva previamente determinada.

Diferente dos corpos ancestrais das milenares danças africanas e orientais – que trazem em si a profunda e a consciente relação com a natureza e a terra -, o corpo clássico é abstrato e até asséptico. Por isso tão bem recebido em eventos em que a cultura é higienizada da realidade carnal e mundana, o corpo é neutralizado em suas expressões mais naturais, instintivas e espontâneas. O corpo negro, árabe, flamenco, cigano tem mãos, tem bunda, tem ventre, tem dedos e cabelos. Tem todas as extremidades mutiladas pela modernidade clássica que enquadrou a nossa natureza numa matemática eficiente, segura e lucrativa. No mesmo sentido, a dança clássica torna branco um corpo negro, seguro e aceitável aos palácios cheios de hipocrisia e esnobismo.

A partir desta exposição, as(os) convido a mover sua atenção para o caso de assédio contra a deputada Isa Penna, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Para além do machismo, estão embutidos aí outros preconceitos: o cultural/racial e o de classe, também relacionado à cultura popular. O funk é cultura popular urbana contemporânea, descendente de músicas e de danças de matriz africana negra. Nascido e vinculado à periferia das grandes cidades brasileiras, traz movimentos desta raiz preta. A cultura corporal das artes africanas tem grande riqueza e sofisticação de movimentos. O balançar dos quadris é algo sempre presente e, ao contrário do que fantasia a cultura colonizadora, puritana e cristã, esse movimento nem sempre é um apelo à sexualidade, mas sim, muitas vezes, é apenas expressão do jogo lúdico do corpo. E mesmo que fosse, a dança para acasalamento é um rito que condensa beleza e respeito aos corpos dos envolvidos.

Ainda assim, as danças da cultura afrodescendente e oriental são interpretadas como desqualificadores morais de um povo e de quem a dança. Entender o movimento de uma mulher que dança como um convite à servidão da libido masculina é conclusão pobre e cômoda para a impotência machista de plantão. Homens incapazes de serem desejados por uma mulher que tem vontade, ou seja, uma mulher que escolhe se quer, o que quer, quando quer e com quem quer. Homens incapazes de se inventarem ou de se reinventarem como atraentes aos olhos de uma mulher que decide e escolhe seus prazeres, entregam-se à violência dos vulneráveis e a ações criminosas.

A fala feita por outro parlamentar na tribuna da ALESP, posterior à denúncia, só corrobora tudo o que foi dito acima: “Você não tem moral para falar.” Este é o pensamento comum aos homens machistas impotentes: aquela mulher que dança, que se movimenta, que fala, que pensa e que o inquire é mulher que não tem moral, pois uma mulher honesta não se mexe, não permite liberdade para si. A atitude desse parlamentar e de seus comuns é atitude rude, machista e incapaz; é atitude de gente que não gosta de mulher, de quem não gosta da condição de sujeito de alguém, e sequer gosta de si.

Em sua auto percepção depreciativa, o homem machista, este sujeito que não é pleno de si, não escuta, não dialoga, não respeita, pois xinga, ofende, violenta, mata. Afinal, a subjetividade do indivíduo produz-se na abertura de significados ao Outro. Possuído por sua impotência frente àquela vontade que não o escolhe, resta-lhe o terror diante da liberdade e do desejo do outro. Preso em sua auto percepção hiper moralizada, teme o “pecado”, a latência dos afetos, das energias pulsantes, vistas como imundície, trata todas as mulheres como devassas, ameaças potenciais, perigosamente subversivas, pois negam-se a serem reduzidas à condição objetal de coisas que se pegam, que se compram e que se usam para posterior descarte.

Gostar é, antes de mais nada, respeitar, exercer o diálogo com a diferença, na medida em que ela nos traz a apreensão contida na vida, em suas distintas figurações. Amar é, antes de mais nada, cuidar, sair de si, projetar-se no Outro, na busca da totalidade de sentido do mundo. Pois quem gosta de mulher respeita e reverencia o corpo feminino. Afinal, quem foi que não nasceu da barriga de uma mulher?