Carta a um amigo
Querido mano,
Não vou negar que há um clamor de muitas pessoas – entre as quais eu – exigindo soluções. Muito menos justificar alguém que vive perdulariamente enquanto tantas pessoas se sacrificam. O problema é que essa é a norma em todo o planeta e ninguém parece se importar.
Mas basta que um povo faça uma revolução para superá-lo e três pragas o atingem imediatamente.
1 – Batem nele, o estrangulam e o agridem para que não consiga solucionar nada do que se propôs;
2 – culpam o governo que tentou fazê-lo, pelas deficiências impostas pelo estrangulador que o ataca;
3 – como se não bastasse, agridem a inteligência coletiva do resto do planeta, ampliando tudo o que de ruim acontece ali no espaço vitimado, como se naquele resto do planeta não piorasse a cada dia, com o silêncio cúmplice de todos.
Eu gostaria de ler o que escreveu Fernando Pérez (1). Talvez eu tenha pontos de acordo com ele, que é uma pessoa que todos nós aqui – incluindo as autoridades – respeitamos. É óbvio que temos que mudar muitas coisas, mas não tem sido uma perversidade tentar, há 62 anos, sufocar-nos para que mudemos de acordo com a conveniência de quem impôs aos nossos pais, e estão a impor ainda hoje, piores condições em todo o mundo? Não é hora de se unirem ao clamor mundial contra este bloqueio que há demasiado tempo nos asfixia e cujo único propósito é fazer com que nos rendamos por fome e desespero?
No fundo, o dilema se resume a isso: aqueles que se rendem e aqueles que não. Não posso julgar quem desiste. Obviamente, temos que nos defender daqueles que, em sua rendição, também se tornam nossos agressores. Muitas vítimas se converteram em agressores ao longo da história. Por exemplo, os crimes do sionismo contra a Palestina.
Não sei se houve ou não houve excessos policiais durante os distúrbios dos últimos dias. Possivelmente sim. Um país pacífico, seguro, que luta com calma contra todos os demônios, se viu subitamente dominado por uma violência que lhe é estranha, imposta também pelos interesses externos. Você me diz que aqueles jovens, vestidos com uniforme e escudos, paus, capacete, etc., que você qualifica como adolescentes, esperando com um cacete para parar a marcha – ou os camisas marrons? (2) – me fere a alma. Eu posso te entender, mas não posso deixar de me perguntar: em que fariam você acreditar se fossem as tropas policiais, com a mesma roupa e cacetes, prontos para quebrar a alma dos manifestantes, como acontece todos os dias em todo o planeta? O que diriam a CNN em espanhol, ou ABC, ou El Comercio?
Às três pragas que mencionei antes acrescenta-se uma quarta: a este povo – agredido, atacado, sufocado por um cerco de estrangulamento que foi apertado sobre uma pandemia que já apertou todo o planeta – não é permitido nem equivocar-se.
Façamos as contas de quanto custou ao povo cubano o ascenso do neofascismo nos últimos quatro ou cinco anos:
– O ataque brutal à Receita dos programas médicos de Cuba no Brasil, Equador e Bolívia, negando-nos vários bilhões de receita e negando o direito elementar à vida a milhões de latino-americanos, sem que ninguém pareça perturbar;
– a aplicação do capítulo III da Lei Helms Burton, reduzindo substancialmente as possibilidades do país de fazer negócios com o resto do mundo;
– a agressão brutal contra a família cubana, violando seu direito de receber dinheiro enviado por parentes do exterior, sob o silêncio dos que dizem clamar pelos direitos humanos dos cubanos;
– mais de 200 medidas contra a economia e as finanças de Cuba, anunciadas publicamente pelo presidente dos Estados Unidos da América, perante a indiferença dos que se apresentam como defensores dos direitos humanos em Cuba.
Tudo isso antes da chegada de uma quinta praga: a Covid-19 e seu impacto devastador no principal setor econômico da ilha, o turismo.
Mas resta uma sexta praga: aproveitar a Covid para apertar o bloqueio, dificultando ou impedindo a entrada de suprimentos médicos em Cuba.
Você consegue calcular o impacto sobre o povo cubano, tanto financeiro quanto de sofrimento humano?
Mas quando parece que temos o suficiente, que não poderíamos suportar outro golpe, ocorre o auge da infestação da pandemia e surge, entre aqueles que têm aplaudido cada uma dessas medidas de estrangulamento, exibindo um cinismo e hipocrisia sem precedentes, uma pérfida estocada dirigida ao coração das pessoas agredidas que enfrentaram a Covid de forma exemplar: o rótulo perverso de SOSCuba (3).
E sobre esse povo paira agora a sétima praga: um “corredor humanitário”, pelas mãos da máquina de guerra mais devastadora e agressiva da história.
Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Síria parecem familiares para você? É neste cenário, meticuloso e perversamente construído durante anos em torno do povo cubano que soam repentinamente as trombetas, convocando o massacre, agora através das redes sociais e dos cada vez mais pervertidos meios de incomunicación.
¡Coññooo primo!
Só que o muro de Nicolás Guillén(4) não é o de Jericó. Os revolucionários de fato foram às ruas, mas não para “enfrentar as massas”. Eles são as massas. Depois que a tentativa foi sufocada – que é o que foi, uma tentativa – eles saíram com bandeiras, hinos e ideias.
Com essas ideias teremos que buscar soluções, criticar-nos no que for preciso, ouvir uns aos outros, atender melhor aos clamores das pessoas, ampliar os espaços de participação, ser mais inclusivos, quebrar a inércia, atrair e não excluir, construir uma democracia mais eficaz e menos formal.
Porque a sociedade que queremos construir não foi concebida para conviver com esses níveis de violência.
Isso, mano, deixamos para aqueles que nos atacam, nos estrangulam, nos atacam e depois, quando temos que nos defender, eles nos criticam.
Dá-lhe, mano.
Um abraço.
Te quiero. (Publicado dia 21.07.2021 no Bufa Subversiva.)
Notas:
1 Fernando Pérez é tido como o melhor cineasta cubano vivo.
2 Camisas marrons – as milícias paramilitares nazistas.
3 SOSCuba – movimento anti regime cubano.
4 Nicolás Guillén, “o poeta nacional cubano”, escreveu a poesia “La Paloma de Vuelo Popular” (1958), traduzida para o português por Thiago de Mello.
(Traduzido por Paulo de Tarso Riccordi)