O mês de fevereiro trouxe um debate quente sobre a questão das taxas de juros e, por tabela, sobre o tema da autonomia do Banco Central do Brasil. Essa última questão, aliás, tratada por mim nesse espaço há exatos dois anos atrás (13/02/21), em artigo intitulado “A autonomia do Banco Central”.
Naquele artigo – e vale a pena citar literalmente – eu identificava a seguinte situação, a respeito do processo de autonomia que estava sendo criada por lei naquele momento, e os dilemas da gestão macroeconômica no país:
“De fato, trata-se de uma separação não trivial entre as políticas fiscal e tributária (que ficam no âmbito do Ministério da Economia, assim como eventuais políticas de renda adotadas, como o auxílio emergencial) e as políticas financeira, creditícia e cambial, que ficam circunscritas ao Banco Central, responsável na sua gestão pela definição da taxa básica de juros e do câmbio.
Isso significa que, em caso de visões diferenciadas sobre a conjuntura econômica entre o Ministério da Economia e o Banco Central, essas importantes políticas econômicas podem ficar descoordenadas, quando não contraditórias. Problema grave, quando a democracia e o processo democrático brasileiro podem apontar visões muito diferentes dos objetivos econômicos a cada mandato e, em especial, como articular esses diferentes instrumentos de política econômica.”
Pronto, aconteceu. O primeiro mês do novo governo de Lula foi praticamente tomado pelos acontecimentos políticos do 8 de janeiro e, na sequência, pela reunião da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) em Buenos Aires, quando o Brasil voltou à condição de protagonista da cena internacional. Mas bastou se debruçar um pouco sobre a gestão econômica para que aparecessem as diferenças entre as orientações e prioridades do Executivo federal e dos executivos do Banco Central. As últimas semanas têm sido tomadas por essa discussão, envolvendo personalidades do governo, como o próprio presidente da República e alguns de seus ministros, o presidente do Banco Central, assessores de vários lados, acadêmicos como André Lara Resende e outros, assessores e operadores financeiros e economistas em geral (a esse respeito, vale muito ver o posicionamento crítico de muitos economistas em um documento intitulado “Taxa de juros para a estabilidade duradoura: manifesto de economistas em favor do desenvolvimento do Brasil”.
Existe agora, como previsível, um conflito de interesses, talvez tratado como um conflito de prioridades entre inflação e crescimento.
Na versão do “conflito de prioridades”, o presidente do Banco Central aparece como um guardião da defesa da moeda, colocando a gestão anti-inflacionária como a prioridade, e as taxas de juros na estratosfera como sua única arma, já que o Executivo federal, através de seus vários ministérios econômicos, insistiria em uma política fiscal frouxa e permissiva. De outro lado, aparece o Executivo federal, priorizando a questão do combate à fome, à miséria e ao desemprego, e colocando a questão de um rebaixamento imediato da taxa básica de juros pelo Banco Central como um instrumento fundamental para a retomada dos investimentos e do consumo, que permitiriam o crescimento econômico. Ao mesmo tempo, seria um instrumento para viabilizar uma renegociação do sistema financeiro com a massa de endividados (empresas e pessoas físicas), encalacrados com situações inadministráveis, e a redução do gasto público, já que o pagamento dos serviços da dívida pública interna, balizado pelos juros domésticos é um dos principais elementos do gasto público do governo federal. Essa é a versão mais branda, pois aqui se trata mais de eventual escolha do combate a ser realizado no momento.
A segunda versão é menos branda, e mais ácida para o presidente do Banco Central. Nela, existe um evidente conflito de interesses entre o rentismo, remunerado pela taxa de juros, e os trabalhadores, os pobres e a pequena e média empresa – os primeiros, dependentes dos empregos e da renda oriundos do crescimento econômico; os seguintes, das políticas públicas do governo, que se viabilizariam por menor aperto fiscal e monetário; e o pequeno empresariado, por estar asfixiado pelos juros altos. Como aponta o manifesto dos economistas que tem o link nesse texto, os juros no Brasil estão excessivamente altos para qualquer padrão de comparação internacional, e isso inviabiliza a “estabilidade econômica, política e institucional”.
O reflexo político também é evidente: a crise econômica e a miséria são o ambiente que serve de substrato para a busca de soluções políticas no autoritarismo. Se o governo democrático não for capaz de debelar a crise econômica e social que está em curso, abre espaço para a busca de soluções que estão no campo do ataque às instituições democráticas. O atual governo foi eleito para fazer diferente, e não tem alternativa que não o sucesso, mesmo que parcial, se quiser afastar o fantasma da solução autocrática.
Trata-se da velha leitura da economia pelos interesses em jogo. Viva a análise da economia política.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Banco Central independente e democracia“, de Antonio Prado.