“… todos vocês se comportam como ratos, sacrificam o povo pelo poder e não são em nada diferentes dos petistas que dizem combater… Querem apenas herdar o espólio de Bolsonaro, se encostando nele de forma vergonhosa e patética” – Carlos Bolsonaro sobre os governadores da direita: Zuma, Tarcísio, Ratinho Jr., Caiado. 

Estamos literalmente obcecados com a figura do atual Imperador. Que outro personagem da cena mundial foi, nos últimos 50 anos, mais citado em um único semestre que o atual presidente estadunidense desde sua posse? As chances de que siga sendo assim são imponderavelmente grandes. Seria interessante que alguma dessas IAs pudesse construir um modelo de cálculo que nos fornecesse em números precisos a intensidade das suas aparições. O mero senso comum, no entanto, fornece bons indicativos da existência de um fenômeno extraordinariamente raro.

As passadas medidas e pesadas de um humanoide de um metro e noventa de altura são impressas no nosso subconsciente da manhã à noite e durante nosso imperturbável sono. Amanhece, e lá está ela de novo, implacável, a majestática figura, aprisionada na jarra d’água do café da manhã como um mago do mal pronto para sair e espargir iniquidade sobre uma terra já suficientemente entristecida. Se se tratasse de um astro do showbusiness, seu sucesso estaria garantido por uma longa eternidade – e se alguém acaso acha que considerada a dimensão do personagem tais superlativos são uma exorbitância, por favor avise.

Todo pretexto serve para uma nova aparição, uma nova ameaça, uma nova bravata. Cada espetáculo é uma reafirmação da autoridade imperial e, ao mesmo tempo, um argumento em defesa do uso da força para submeter o outro – todos aqueles que não pertençam à sua turma.

Quando Trump, em sua cruzada policial, ataca os miseráveis das grandes cidades dos Estados Unidos e declara guerra contra “os lunáticos radicais de esquerda”, a operação ultrapassa em muito o alvo declarado. Ele fornece aos aliados e seguidores uma senha e um objetivo de vasto alcance: livrar a Terra Santa da presença dos infiéis, expulsando-os para o mundo da invisibilidade. É uma Cruzada e nas circunstâncias que estão dadas tem escala planetária. A palavra de ordem unifica e dá força aos fanáticos que o acompanham na jornada de purificação da Terra.

Mudam as palavras, mas o resultado acaba sendo sempre o mesmo: os judeus, os hereges da Terra Santa e os outros, as bruxas de Salém e as outras, os lunáticos de esquerda e, logo, os desterros, os campos de concentração e extermínio, as fogueiras.

Já não é de hoje que somos obrigados a ouvir (de congressistas e políticos brasileiros, por exemplo) essas palavras mágicas proferidas com o propósito de estigmatizar. Elas injetam nas veias dos fiéis cargas crescentes de energia. Não será nenhuma extrapolação imaginar que o início desse segundo mandato marque, portanto, o começo de uma nova era e vá além do país comandado pelo Eleito. O mundo ocidental – pelo menos – é o horizonte. O que Donald Trump está inaugurando nos Estados Unidos com um pequeno conjunto de medidas é significativamente mais relevante para a história do que a sua espalhafatosa política tarifária.

É bastante provável que seus efeitos se farão sentir para muito além dos Estados Unidos, sim, e para muito além dos dias atuais. A guerra tarifária, por mais estapafúrdia que seja, sem muito tardar, chegará a um ponto de acomodamento e o mundo da economia mundial seguirá seu curso – o grande capital, seja qual for a natureza que tenha adquirido nas últimas décadas, seguirá ainda mais firme no mando do timão, e até aí nada de novo. Mas a guerra interna de Trump (contra imigrantes, homeless et outros e para subjugar a níveis inimagináveis tanto o judiciário, quanto o Partido que o adotou, de bom grado, diga-se, quanto as máquinas de informação, etc), essa deve produzir consequências dramáticas para milhões e milhões de pessoas – aquelas mesmas que são rotineiramente as vítimas preferenciais da concentração da riqueza. Não será nenhuma surpresa se, no final das contas, modificar inclusive as sempre glorificadas instituições do Estado e da democracia americana.

É possível que as medidas de Trump voltadas para o próprio país tenham um quantum maior de veracidade que de encenação. Mesmo assim será sempre preciso considerar que pode ser o contrário, mais espetáculo que realidade. No mundo de Donald, o fictício e o real se misturam e trocam de lugar conforme as conveniências enquanto sua figura projeta uma sombra superdimensionada com relação à real estatura. Ele mesmo, o personagem, não existiria num contexto onde o senso crítico da maioria dos cidadãos ultrapassasse a rés do chão. Talvez por isso, Donald tenha se habituado a se colocar contra os holofotes para deliberadamente ter sua sombra aumentada e, assim, maravilhar a plateia.

Uma disputa fratricida pela herança

As últimas reações do clã Bolsonaro ao crescente isolamento imposto pela proximidade da sentença que deve cair sobre o chefe demonstram, entre outras coisas, quão rarefeita é a qualificação política desse grupo que durante quatro anos comandou o país. A sequência de asneiras é interminável – já havia comentado o fenômeno aqui duas ou três semanas atrás, mas a cada nova semana, o repertório só se enriquece. Dessa vez quem apareceu para contribuir foi o filho vereador pelo Rio de Janeiro. Com a fúria de um desesperado e a costumeira elegância da família, investiu a torto e a direito contra os mais fortes aliados, os governadores da direita. “Desumanos, sujos, oportunistas, canalhas”, “ratos”, escreveu numa rede social referindo-se àqueles que quatro meses atrás se abraçavam numa manifestação de apoio ao mito em plena Avenida Paulista.

Isolado em Washington, envolto no manto protetor das alas mais extremadas do trumpismo e por isso mesmo, se sentindo o rei da cocada preta, Eduardo Bolsonaro, atuando com a desenvoltura do próprio mandatário americano, já vinha faz algum tempo contribuindo para arrastar a turma toda rumo ao precipício – não são poucos os que, à esquerda e agora também à direita, estão lhes desejando uma excelente viagem.

A verdade é que o núcleo duro do bolsonarismo até aqui, a família Bolsonaro, superestima em escalas estratosféricas a dimensão política do capitão. Até agora não se deram conta de que o pai como fenômeno político é muito mais o resultado de um vazio excepcional no campo da direita e da extrema direita (preenchido no passado por um Paulo Maluf, por exemplo) do que de suas qualificações para liderar um projeto de tal envergadura.

A conquista da presidência veio após um período de estupor e desarranjo na política institucional brasileira, decorrente da deposição injustificada de uma presidenta legitimamente eleita. No vácuo deixado por essa desorganização política do país, o poder caiu literalmente no colo daquele que se mostrou o mais desbocado, barulhento e simplório entre todos os que poderiam ocupar o espaço – a tormenta que se abateu como um castigo divino sobre os partidos políticos tradicionais (exceto e apenas parcialmente sobre o PT), a desmobilização e a despolitização daqueles que se situavam do centro para a esquerda, a ressaca entre os eleitores em geral e o aparecimento na sociedade de energias psíquicas cada vez mais brutalizadas fizeram boa parte do trabalho para a fermentação do bolsonarismo e, finalmente, para a vitória do mito na eleição de 2018.

A realidade e a mitologia

Que diabos de responsabilidade tem Lula sobre o tarifaço decretado por Trump? Pelo que se sabe, desde o princípio a mira do presidente americano ao impor as taxações estava explicitamente voltada para a suposta perseguição jurídica contra Bolsonaro – puro pretexto na verdade para seguir com o espetáculo e, ao mesmo tempo, tirar uma casquinha publicitária em cima da notoriedade internacional do presidente brasileiro. O valoroso paladino defendendo os perseguidos políticos e injustiçados dos regimes totalitários como o do Brasil de Lula. Da mesma forma como tentou transferir sua autoridade para o pífio capitão (ver artigo anterior), Trump agora tenta colar a fama de Lula à sua campanha midiática.

Ainda assim, 35% dos brasileiros pesquisados pelo Datafolha responsabilizam o presidente brasileiro pelo decreto do presidente americano, enquanto 37% creditam a responsabilidade ora a Bolsonaro pai (22%), ora ao filho residente em Washington (17%). Empate técnico, como dizem os estatísticos. Acredite quem quiser – mas é aconselhável acreditar.

O que isso quer dizer? É simples: a realidade e a construção racional da realidade são duas coisas não apenas díspares, mas antagônicas. Ao menos é assim nas condições mentais da sociedade capitalista atual – apesar dos permanentes esforços do ser humano para aproximar uma da outra, jogando, com muito esforço, luz sobre o não iluminado, o que segue valendo para milhões de seres humanos – e cada vez mais – é o seu sistema de fé, sua religião. A sua idealização do real. A mitologia vale mais que a razão. Não por nada um sujeito dos mais ordinários foi elevado à categoria de mito. E os mitos, muitas vezes, costumam ter um sistema imunológico praticamente invencível. Resistem a qualquer desmonte crítico.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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