O medo é o afeto soberano da humanidade. É um alerta, uma estratégia de luta ou de fuga. São muitos os medos – de amar, de morrer, da separação, do estranho, da violência, das guerras, da solidão, do fracasso. Em alemão, a palavra angst pode ser usada tanto para medo como para angústia. Mesmo sendo afetos distintos, eles estão relacionados. Ambas as palavras são reações aos perigos.

Não é fácil confessar os medos, mas o diretor de cinema Alfred Hitchcock teve no medo o tema central de seus filmes. Quando menino, ele foi enviado a uma delegacia com um bilhete de seu pai pedindo ao delegado que o prendesse. O pequeno Alfred levou pela vida essa experiência traumática, confessou-se medroso. Fazendo filmes sobre os medos, foi conseguindo atravessá-los, ajudando assim o público na travessia.

Também vivi um terror entre três e quatro anos de idade, quando meus pais foram ao cinema e fiquei com uma senhora que trabalhava em casa. Ela me contou uma história sobre o ladrão que atacou um casal com uma faca por debaixo da cama. Fiquei espantado, nunca contei e nunca mais quis ficar só com essa senhora. As crianças buscam atravessar os receios brincando com o medo, sendo arteiras; os adultos escrevem ou fazem arte. A travessia da segurança familiar imaginária requer coragem por amor à liberdade.

Um dos mais difíceis aprendizados é atravessar o medo, porque ele diminui as vibrações do espetáculo cotidiano. Aprender a conviver com os medos é o alfa e o ômega do saber viver. Os medos e os terrores começam cedo, quando tudo pode ser perigoso, pois a criança nasce num desamparo total. Sua dependência de viver é a mais intensa e extensa entre os animais. O medo mais primitivo é o medo de ser abandonado pelo indispensável, a mãe, o peito materno, do qual o bebê depende para tudo.

Atravessar o medo é aumentar a coragem, aprendendo, por exemplo, com os indígenas e os negros. No Brasil os negros enfrentam medos diários diante dos olhares racistas. Ser negro aqui é ter que de se cuidar da arrogância dos armados, do ódio e do preconceito racial. Lembrei agora de uma negra americana, Maya Angelou, artista, dançarina, cantora, poeta, líder antirracista, autora do famoso poema Ainda Assim me Levanto. Ler, reler o poema é um apoio, um amparo que tem ajudado milhões de pessoas no mundo. Eis o final:

  • Deixando para trás noites de terror e medo
    Eu me levanto
    em uma madrugada maravilhosa e clara
    Eu me levanto.

A repetição da frase “eu me levanto” é uma oração, um mantra, uma fé, que não salva, mas é uma luz para quem pode ver a luminosidade da coragem do “eu me levanto”.

Assim como a angústia, o medo é uma reação diante de perigos que podem gerar desde um mal-estar até o pânico. O medo é definido como angústia real diante de um perigo exterior. Já a angústia automática é um estado de expectativa relativo a um perigo não identificado. O medo é socializador: o bebê depende de alguém para viver. Importante é que o medo e a angústia interagem entre si, pois o medo está impregnado de angústia, assim como a angústia liga-se ao medo. Os medos e as angústias são reações diante dos perigos, ameaças reais, imaginárias ou desconhecidas na angústia automática, algo como estar angustiado e não saber o porquê.

Freud, no seu principal livro de psicopatologia, Inibição, Sintoma e Angústia, chega ao final da obra concluindo que a angústia em geral – incluindo o medo – é a reação ao perigo. Entretanto, nos complementos, formula a pergunta: “Qual é o núcleo, o significado da situação de perigo?”. Aí conclui que é o desamparo, tanto diante do perigo real como diante do desconhecido perigo pulsional.

O desamparo psíquico é central, é o motor do desejo, da criatividade. Para ir atrás dos desejos é necessário construir amparos, apoios psíquicos, que ajudam na travessia dos medos. Atravessar “o medo de sentir medo” é diminuir o medo do inconsciente, do estranho, de desenvolver amparos diante do desconhecido. Atravessar os medos é aprender a conviver com eles e criar novas pontes diante dos desamparos.

Construir amparos com as artes, as leituras, o humor, as brincadeiras, a curiosidade, o espanto. O desamparo marca presença constante na vida, na clínica psicanalítica, em um mundo desiquilibrado, com amparos sociais frágeis. Por tudo isso, a vida requer boas parcerias, a começar pela parceria consigo mesmo, parcerias amorosas para brindar a vida com entusiasmo. São caminhos difíceis, e às vezes o desânimo cresce, bem como os temores, e é aí que se requer imaginação na travessia dos medos. Precisamos de ousadia. Não é fácil, nem impossível. (Publicado na ZH 23/24 de dezembro de 2023)

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Ilustração: Mihai Cauli  
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Ainda assim eu me levanto 

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