As súplicas de reforço da austeridade fiscal parecem não ter fim por essas nossas tristes paragens tupiniquins. Para um visitante desavisado, a leitura dos grandes meios de comunicação oferece a construção de um mosaico em que o principal problema do Brasil residiria em uma suposta tentativa de abandono do compromisso com o teto de gastos, tal como estabelecido na Emenda Constitucional (EC) nº 95, aprovada em dezembro de 2016. Oh, tamanha heresia! Esses gastadores irresponsáveis estão mesmo sempre à espreita, prontos para vilipendiar a seriedade fiscalista. E, assim, acabar de vez com esse nosso querido país.

Para esse povo do financismo, o drama da realidade social e econômica da população brasileira pouco importa. A persistência de uma taxa de desemprego oficial acima de 12% há mais de cinco anos não merece tanta atenção por parte dos “especialistas”. Atualmente são mais de 14 milhões de pessoas que respondem ao IBGE estarem sem conseguir emprego. Isso sem contar os desalentados, que nem têm mais os meios financeiros nem a energia para continuar essa busca por um posto de trabalho. Além disso, essa tecnocracia não se sensibiliza tampouco com as impressionantes taxas de emprego intermitente ou de outras formas de informalidade, todas elas convertidas a uma legalidade tão duvidosa quanto monstruosa depois das reformas trabalhistas promovidas por Temer e Bolsonaro.

A elevação sistemática e recente da taxa oficial de juros tampouco é considerada um problema para os que apenas obedecem aos ditames de suas planilhas de cálculo econométrico rasteiro. As decisões do COPOM têm sido saudadas de forma entusiástica por 11 em cada 10 dos selecionados para responder às pesquisas do Banco Central junto à nata do sistema financeiro. A autoridade monetária realiza a cada semana essa enquete junto a dirigentes de instituições do mundo do financismo para captar suas opiniões e balizar as decisões do órgão regulador desse mesmo sistema. O fato de o Comitê ter quase quadruplicado a SELIC em um intervalo de apenas nove meses não tem nenhuma importância aparente. Em janeiro, a taxa estava em 2% e agora no final de outubro atingiu 7,75%. Afinal, qual o problema? Trata-se apenas e tão somente de respeitar os instintos das livres forças de oferta e demanda, não lhe parece?

O financismo segue no comando

Se a inflação parece incomodar um pouco tais analistas, sua insistência em se utilizar de um arsenal ultrapassado e equivocado em sua análise os leva a sugerir ainda mais arrocho monetário para diminuir o ritmo de crescimento dos preços. Assim, operam como se o atual processo inflacionário tivesse como causa fundamental o tal do “excesso de demanda sobre a oferta”. Desconhecem os aumentos de preços associados a fatores estruturais e de oferta, como é o caso dos derivados de petróleo, da energia elétrica, dos alimentos e de produtos importados em geral (por conta da desvalorização cambial exagerada). Mas tais especialistas insistem em recorrer ao aumento da taxa de juros para reduzir uma suposta demanda excessiva, quando na verdade o país atravessa anos de recessão acumulada.

O aumento generalizado dos indicadores da pobreza e da miséria tampouco merece a atenção devida. O retorno do Brasil ao mapa da fome global não é fato digno de nota ou preocupação. Gente passando fome, morando nas ruas ou brigando na fila do osso são cenas que devem encontrar sua explicação no âmbito do excesso de burocracia que impede o livre espaço para a plena vigência do verdadeiro empreendedorismo em nossas terras.

O grande pesadelo que aflige as elites brasileiras atende pelo nome de desrespeito à austeridade fiscal. Pode parecer triste, mas infelizmente esta é a realidade. Os privilegiados destas paragens agarram-se como podem a verdadeiros dogmas que foram ideologicamente construídos para lhes servir, a exemplo da crença religiosa ou do negacionismo científico. Ora, como explicar a persistência das ideias fiscalistas quando a maior parte dos países do centro do próprio capitalismo já as abandonou ou flexibilizou sua essência arrochadora de forma substantiva? Uma das muitas razões estaria no ambiente altamente favorável por aqui aos ganhos parasitas associados à vigência de um sistema financeiro viesado e autocentrado, marcado pela dominância extrema do interesse da finança pura. Não vamos nos esquecer de que os bancos jamais deixaram de apresentar de forma rotineira e sistemática seus lucros bilionários, quase sempre bebendo na rentabilidade alta e sem riscos, que costuma vir embalada e oferecida pelo próprio aparelho de Estado.

Em defesa do teto de gastos a qualquer preço

Após terem saudado com todas as honras a introdução da regra do teto de gastos na própria Constituição, os formadores de opinião têm resistido desde então a qualquer tipo de flexibilização da austeridade fiscal. Assim como fizeram durante a crise de 2008/9, blindaram o Brasil de quaisquer medidas de uma “aventura irresponsável”, como as que estavam sendo levadas a cabo pelos governos dos Estados Unidos e da União Europeia. A elevação das despesas públicas por lá não poderia de forma alguma ser transportada para cá. A compreensão tardia por parte de importantes instituições multilaterais, como Banco Mundial (BM) e Fundo Monetário Internacional (FMI), de que as despesas para se contrapor ao ciclo recessivo da economia seriam necessárias tampouco ganhou destaque por aqui.

Porém, passados cinco anos de arrocho sistemático e constitucionalizado, agora a emergência da crise da recessão combinada com a tragédia acumulada de quase dois anos de ausência de combate à pandemia apresenta a sua fatura. Bolsonaro precisa a todo custo apresentar algum programa de governo e resultados palpáveis para a população. Estamos a menos de um ano das eleições presidenciais e sua popularidade segue em baixa. Sob tais condições, a questão dos programas de assistência social ganha destaque na agenda política, seja como uma remodelada no Bolsa Família de Lula para chamar de seu, seja a continuidade do auxílio emergencial que seu governo cortou a golpes de tesourada.

Ocorre que ambos exigem aumento de despesas orçamentárias e o governo precisa encontrar alguma maneira de “furar” o teto de gastos. Afinal, desobedecer à regra da austeridade fiscal é considerado crime de responsabilidade, passível de enquadramento no impeachment do ocupante do Palácio do Planalto. E aqui entram em cena os defensores do fiscalismo exacerbado, acusando o risco de tal mudança no rigor da austeridade fiscal.

Um dos aspectos que mais impressiona nesse debate é que o recurso à denúncia da volta de uma suposta “irresponsabilidade fiscal” encontra eco também junto a setores da própria oposição. Alguns são movidos pelo receio de que a introdução de medidas de assistência social possa ser utilizada politicamente por Bolsonaro em sua tentativa desesperada de voltar à preferência do eleitorado. Outros o fazem por uma incompreensível convicção de que o abandono às regras do teto de gastos possa realmente significar algum tipo de risco para o bom equilíbrio macroeconômico.

Ora, se Bolsonaro vai encontrar no retorno do auxílio emergencial algum tipo de boia de salvação para o mergulho de sua popularidade, isso é alguma coisa que vai se resolver no debate político. Não cabe à oposição se furtar a oferecer à maioria da população medidas que ajudem a minorar seu sofrimento cotidiano, além de ser instrumento importante também para própria recuperação da economia. Ao invés de fazer coro com a grande imprensa ao combater o desvio do governo por encontrar subterfúgios para aprovar um benefício de R$ 600, as lideranças deveriam caminhar no sentido oposto. É o momento de propor um valor de R$ 700, como forma de recuperar o poder de compra do auxílio aprovado em abril do ano passado.

Pelo fim do teto de gastos

A regra do teto já deveria ter sido eliminada há muito tempo. O Brasil não está quebrado e o governo conta com recursos mais do que suficientes para fazer frente às novas despesas tão necessárias. A Conta Única do Tesouro Nacional junto ao Banco Central registra um saldo credor superior a R$ 1,5 trilhão. Mesmo que assim não fosse, a conjuntura exige a adoção urgente das chamadas “medidas contracíclicas”. Ao contrário do que sugerem o senso comum e o pensamento austericida, nos momentos de baixa do ciclo econômico é que mais cabem as propostas de elevação das despesas do governo, inclusive como forma de atuar no caminho da recuperação do crescimento das atividades.

Algumas almas bem intencionadas ainda se arvoram em sugerir que a eliminação do teto de gastos seja imediatamente compensada pela adoção de outras regras de responsabilidade fiscal. Na verdade, atuam também como se boa parte de nossos problemas estivessem associados a algum tipo de descontrole no gasto público, assim como nos fizerem crer de forma equivocada o BM e o FMI durante quatro décadas. Mas o caminho é outro. Tudo indica que a sociedade brasileira precisa passar por um bom período de desintoxicação do excesso de fiscalismo que nos vem sendo administrado há tanto tempo. A simples menção ao termo “responsabilidade fiscal” vem sempre associada às imagens de carência nos programas sociais e na redução significativa na capacidade de o Estado implementar suas políticas públicas.

O que estamos precisando é de programas marcados pela responsabilidade social e por um sentido de responsabilidade e compromisso com o desenvolvimento nacional. Insistir no discurso puro ou travestido da “responsabilidade fiscal” em um momento tão difícil como o atual é tapar o sol com a peneira. Estamos com um acúmulo de décadas em sequência de fracasso com a busca de metas de superávit primário e da austeridade fiscal. Já passou a hora de virarmos a página do fiscalismo matador.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli    Revisão: Celia Bartone

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