O que aconteceu nesta terça-feira (06.12.2022) foi histórico em vários sentidos. Marrocos é o quarto país africano a chegar nas quartas de final de uma Copa do Mundo (depois de Camarões em 1990, Senegal em 2002 e Gana em 2010); é o primeiro ao norte do continente, localizado acima do deserto do Saara; o primeiro de língua árabe, na primeira Copa disputada no “mundo árabe”, e que já foi palco de outras duas vitórias surpreendentes de seleções árabes (da Tunísia sobre a França, na terceira rodada, e da Arábia Saudita diante da Argentina logo na estreia). Para completar, a seleção do Marrocos nunca havia vencido uma partida oficial contra a seleção da Espanha, nas três disputadas anteriormente (incluindo o empate na Copa de 2018). Venceu hoje pela primeira vez, no jogo de futebol mais importante da história daquele país, e que, por força de todos esses ineditismos, já se tornou também o mais emocionante e marcante desta Copa do Mundo de 2022.

Há relatos muito antigos da ocupação da região onde hoje é o Marrocos, que datam do século XII a.C., sobre a presença de povos berberes, fenícios e cartagineses, dentre outros. Na virada do século XVII para o XVIII, a região foi governada pelo famoso sultão Moulay Ismail, figurinha carimbada nas narrativas sobre os monarcas mais cruéis da História, que ficou conhecido por construir a cidade de Mequinez – chamada de “Versalhes de Marrocos” devido à opulência – para substituir a capital Marrakech e por mandar adornar os muros dessa cidade com 10.000 cabeças dos seus inimigos. Dizem as más línguas que esse “Ismail de Marrocos”, representante da poderosa dinastia alauita (dominante no Magrebe), teve 500 esposas e 888 filhos!

Mas foi a partir do século XX que o Marrocos se tornou objeto de disputas imperialistas mais intensas, particularmente desde 1911, na chamada Crise de Agadir (ou Segunda Crise Marroquina), quando o país foi literalmente dividido pelas potências europeias, especialmente por França e Espanha, em um episódio que muitos historiadores consideram ter adiado o início da 1ª Guerra Mundial em três anos.

Essa treta começou a esquentar em 1905, quando o Kaiser da Alemanha, Guilherme II, declarou que seu país não aceitaria que o Marrocos fosse dominado por uma única nação europeia (como já estava acontecendo na vizinha Argélia desde o início da ocupação francesa, no final do século XIX). Em uma conferência internacional no ano seguinte, os “donos do mundo” decidiram então que o Marrocos continuaria independente, mas seus portos seriam divididos entre a França e a Espanha (para acalmar os alemães, a França cedeu uma parte significativa do Congo, conhecida como Neukamerum). Era assim que funcionava o colonialismo, como uma espécie de pizza à francesa, em que cada potência imperialista queria sempre abocanhar uma fatia maior que a outra.

A Espanha estabeleceu um protetorado ao norte do Marrocos, nas regiões de Rir e Jebala, chamado de “Marrocos Espanhol” entre 1912 e 1956, quando finalmente os marroquinos conquistaram sua independência – com exceção das cidades de Ceuta e Melilla, que permanecem sob o domínio espanhol até hoje. Vale lembrar que Marrocos e Espanha compartilham a menor distância entre a África e a Europa, no estreito de Gibraltar, canal que separa o Mar Mediterrâneo do Oceano Atlântico (no trecho mais curto, a distância é de menos de 14 quilômetros). Além disso, os dois países dividem a única fronteira terrestre entre os continentes (justamente pelas cidades de Ceuta e Melilla), uma das mais conflituosas do mundo.

Em junho deste ano, as polícias marroquina e espanhola se juntaram para realizar o maior massacre nas fronteiras europeias em muitas décadas, quando 23 imigrantes foram assassinados tentando pular o muro de Melilla (sim, existem muros nessas duas cidades). Essa semana, às vésperas das oitavas de final da Copa do Mundo, o Vox, maior partido espanhol de extrema direita, foi a público cobrar um reforço de segurança em virtude do alto grau de tensão dessa partida.

Nessas cidades fronteiriças, atua um grupo separatista chamado Frente Polisário, que reivindica a realização de um referendo sobre a autodeterminação, apoiado pelo atual governo espanhol de centro-esquerda, mas não reconhecido pela monarquia que comanda o Marrocos. No ano passado, o governo espanhol autorizou que o líder dessa Frente Polisário entrasse na Espanha para tratar de um problema de saúde em um hospital de Madri, ao que o governo marroquino reagiu, em retaliação, permitindo que milhares de imigrantes cruzassem a fronteira entre o Marrocos e os enclaves de Ceuta e Melilla. Esse é um ótimo exemplo do quanto a questão da política imigratória é bem mais complexa do que parece no território europeu hoje.

Por tudo isso, esta campanha de Marrocos já é histórica, no melhor sentido do termo, mas pode ficar ainda mais, levando em consideração que o próximo adversário é Portugal, a outra nação da Península Ibérica. Da última vez que os árabes conquistaram a Península Ibérica, ficaram lá por mais de 700 anos. Passando por Portugal, Marrocos provavelmente enfrentaria sua principal colonizadora, a França. Será que Hakimi, Ziyech e cia vão conseguir redimir todos aqueles que, como eu, torcemos por reparação histórica durante a Copa do Mundo?
Baila, Marrocos.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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