Bailei com o “Bailei na curva” muitas vezes, cantei a música final emocionado e repeti a frase final para não esquecer: “não vamos nos perder por aí”. Não nos perdemos, não mais nos perderemos. Escrevo para festejar os 40 anos do espetáculo teatral “Bailei na Curva”. Quarenta anos para uma peça teatral no Brasil ou no mundo é um espanto. Vi várias vezes Bailei e agora voltou, verei outra vez no dia primeiro de outubro, dia que a peça estreou em 1983. Abaixo o que escrevi no livro da peça, um convite que me honra até hoje, publicado em 1984 pela LPM.

“Um espaço coletivo para pensar”

Uma das riquezas da peça “Bailei na Curva” está nos planos simultâneos que a história revela: sexualidade, política, identidade. A participação do público ocorre na medida em que todos podem reviver, de diferentes perspectivas, um passado em comum. Os jogos infantis, as brigas, o grupo de amigos, o esforço por entender o mundo, sem nunca conseguir. Compreender o passado é um desafio que, às vezes, é imprescindível no desenvolvimento do ser humano. A busca da origem para encontrar o sentido da vida. O subjetivo é incompreensível se não se prolonga até alcançar o campo coletivo das determinações históricas.

No início da peça são crianças que vivem o golpe militar de 1964 através dos pais e da escola. Interessante observar as formas como as crianças vivem a política. O público revive a infância, a repressão sexual, que ao aparecer em forma de brincadeira alivia e faz rir. Em boa medida a dimensão cômica do trabalho funciona como a piada através do retorno do reprimido. A sexualidade está presente em quase todo o espetáculo de forma explícita: desde os jogos infantis, passando pela reunião dançante, a cena do carro “roubado” do pai, a vida da faculdade até o nascimento do filho.

Ao sair do espetáculo comecei a fazer algumas perguntas: por que a parte final do trabalho, a vida adulta, é dramática? A infância e a adolescência são motivos de risos constantes, mas após ingressarem na faculdade, o clima fica sério e pesado. Uma resposta possível é que a vida em geral foi ficando difícil, a questão do trabalho, das responsabilidades. Mas há talvez o aspecto de que fazer humor sobre o que está se vivendo é mais difícil, falta uma distância dos acontecimentos.

O Teatro exerce um fascínio milenar sobre o ser humano, e tem sido o reflexo de acontecimentos vitais de cada época. Há alguns anos era frequente ler sobre a crise do teatro e seu fim. A realidade vem mostrando que, felizmente, os prognósticos, por enquanto, falharam. A possibilidade do contato direto com os atores nos permite uma reflexão singular, própria dessa expressão artística. Como escreveu Grotowsky: “Aqui observamos a função terapêutica do Teatro para as pessoas, em nossa civilização atual. É certo que quem atua é o ator, mas o faz em função de um encontro com o espectador, em forma íntima, manifesta, que não se esconde atrás de uma câmara, mas sim em confrontação direta com ele, algo assim como em vez dele”.

“Bailei na Curva” permite, com facilidade, a identificação entre o espectador e o ator. O desafio de todo espetáculo teatral é conquistar o público, pois quando isso não ocorre, há o fracasso por melhores que sejam as intenções. Um livro, um quadro, pode tardar para fazer sucesso, um espetáculo teatral é sempre imediato. A reação do público é sentida pelos atores no momento como ocorre no Bailei. As pessoas estão necessitando de espaços para pensar coletivamente suas vidas. O Teatro como fenômeno coletivo, permite romper o isolamento em que se vive. Um dos efeitos de 1964 foi o de impedir as manifestações coletivas, não só as diretamente políticas, como até a possibilidade de encontros em geral.

Durante 20 anos, o país viveu sem democracia, com medo e quase sem esperanças. O fato de que jovens pesquisem o passado pessoal e social é uma forma de recuperar a memória. A música no final da peça traz a esperança: ‘Anos 80 não vamos nos perder por aí’. O clima de tristeza e desânimo dos anos 70 e do sofrimento como adultos, é amenizado. O público já tinha se divertido, ficado sério e ao final sente no canto, o canto de uma busca, uma procura. Não há orientações definidas sobre os caminhos a seguir, nenhum otimismo ou grandes ilusões. Recordei o poeta Carlos Drummond de Andrade quando escreve: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. (Publicado no Facebook do autor)

Clique aqui para assistir um dos muitos vídeos da peça.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
Clique aqui para ler artigos do autor.