Teve a impressão de que duas baratas correram até a cozinha. Ou seria a mesma indo e voltando? Gabriela se entristece sempre que vê baratas. Tem nojo também. Mas em dias melancólicos, baratas lhe são mais entristecedoras que nojentas.

Devia ter uns oito ou nove anos quando uma barata, daquelas cascudas e brilhantes, apareceu na cozinha. Seu pai, previdente, atacou-lhe com inseticida. Não só na cozinha, mas na casa toda. Funcionou. Nenhuma outra barata apareceu. Nem mesmo mortas. O único sinal do veneno, foi o cadáver das andorinhas na varanda.

Dias antes, um casal de andorinhas, aninhou-se no buraco do forro de gesso da varanda. Gabriela ficou encantada. Eram seus passarinhos. Todo dia de manhã, antes mesmo do lanche, corria para lhes desejar “bom-dia!”. Aguardava ansiosa a vinda dos filhotes. Agora, se viessem, seriam órfãos.

Naquele dia, aprendeu que na vida há mais cinza do que branco e preto. Que às vezes, tentando evitar um mal, destrói-se um bem. Que buscando alegrias e prazeres, às vezes, produzimos tristezas. Tornou-se receosa de matar os passarinhos de sua vida.

Pela TV, assistia à invasão do Capitólio como se fosse uma colônia de baratas cascudas, armadas e chifrudas infestando uma casa brega em busca de açúcar. Sabe que não deveria, mas não consegue deixar de entristecer-se quando vê gente que, podendo ser andorinha, orgulha-se de ser barata.

A vida é cheia de venenos. Frustrações. Ódios. Vaidades. Desamores. Traições. Egoísmos. Contaminando aos poucos. A cada tristeza que, por não sabermos sofrê-las, tentamos nos desfazer delas espalhando tristeza. Como se uma barata pudesse se desenvenenar envenenando outras.

Gabriela consome todo dia seus venenos. Pelas imagens e sons das telas. Na grosseria do guarda. Na deselegância do esbarrão sem pedido de desculpas. Na fechada do motorista que ainda por cima lhe xinga quando vê que é mulher. A luta por manter-se andorinha e voar mais alto que as baratas é diária.

Andorinhas voam com graça e agilidade. Baratas voam com um desengonço barulhento. Como pássaros grotescos. Meio termo entre o voo e a queda, o real e a dissimulação. É como uma caricatura. Engraçada quando se reconhece o caricaturado no exagero dos traços.

Os venenos quotidianos nos tornam grotescas caricaturas humanas. Podendo ser solidários, respeitosos e racionais. Nos permitimos ser insensíveis, arrogantes e idiotas. Ás vezes, fica até engraçado de se ver. Noutras, é só triste e feio mesmo.

Gabriela viu o grotesco no chifrudo do Capitólio. Meio animal. Meio viking. Meio barata de antenas curvas. Caricatura de democracia corna, que trai o todo em benefício de alguns. Dos que pensam igual. Dos que são do meu lado. Dos que são da minha ideologia. E o resto, que se envenene, pereça ou desapareça.

As baratas atravessaram novamente a cozinha. Duas mesmo. Como o casal de andorinhas da sua infância. Pensou em esmagar-lhes, mas não teve ânimo para deixar o sofá. Desligou a TV e deitou-se desejando sonhar que era andorinha e voava pra bem longe de tudo isso.