O senador socialista norte-americano Bernie Sanders saltou na frente. Quando ainda faltavam ser contados os votos de alguns estados, ele fez um rápido movimento tático para deslocar Joe Biden de sua posição esperada, à direita do centro. Num vídeo que viralizou mundialmente, Bernie tensionou a corda que amarra o futuro mandatário, puxada, do outro lado, pelo centro e a centro-direita democrata e pelo Senado, de maioria republicana. Foi uma amostra do programa que a ala esquerda do partido cobrará do presidente eleito por ter retirado sua pré-candidatura e se lançado, decisivamente, à busca da vitória contra Trump.
O Partido Democrata norte-americano vem, eleição a eleição, vendo crescer o número de deputados, senadores, prefeitos, governadores não alinhados com o centro-centro direita, que há 192 anos o caracteriza. Há 30 anos é hegemonizado por um centro – suavemente progressista no mercado interno e belicista no exterior – simbolizado nos casais Clinton e Obama. Depois de Hillary ter sido derrotada por Trump, interrompendo dezesseis anos de mandatos dos Democratas, apresentou-se a necessidade de transição de nomes, gerações e etnias. Joe Biden foi a ponte segura. Faz parte do grupo. Foi leal vice-presidente nos dois mandatos de Barack. É “bom articulador”, vale dizer, é bem aceito tanto por democratas quanto republicanos, por não defender posições “radicais”, excludentes.
E a vice-presidente Kamala Harris cabe à perfeição no último modelo do comando Democrata. Tem a mesma história e pertence à mesma classe social da elite negra intelectual norte-americana a que os Obama pertencem. Foi apoiada por quase tantos multimilionários quanto Biden. É formada em ciência política e doutora em Direito, filha de também intelectuais militantes de causas sociais e neta de diplomata. Integrou o staff de campanhas eleitorais democratas, foi procuradora geral da Califórnia, é senadora, foi pré-candidata à presidência pelo partido, contra Bernie e o próprio Biden. E, para o público, é a própria imagem progressista desejada nos Estados Unidos do Black Lives Matter: mulher, negra, 55 anos, filha de imigrantes (então doutorandos) jamaicano e indiana. Parece desenhada para suceder ao próprio Biden, de 77 anos, na presidência do país. Mas eu suspeito que a História acelerou e ela pode ser atropelada pelo movimento dos grupos sociais a que apenas aparenta pertencer.
Vai ser barra pesada
O governo de Donald Trump e a crise social e econômica trazida pela pandemia somente evidenciaram e aceleraram as contradições que já estavam emergindo nos brevíssimos últimos anos. A combinação da falta de políticas sociais de Donald Trump com o Coronavírus causou um enorme estrago na sociedade. Nesta primeira segunda-feira pós eleição (dia 9/11), o próximo presidente anunciou os eixos de sua ação imediata para recuperação dos estragos da Covid-19.
Trata-se de um movimento de resposta dirigida para três destinos: tanto para reduzir o impacto interno e externo do destempero de Trump na imagem dos Estados Unidos como potência mundial, mostrando aos aliados internacionais e à China e Rússia que o país já tem comando seguro; quanto mostrar que começará imediatamente o trabalho de recuperação do país. E, imediatamente, contrabalançar o movimento da pequena, mas organizada e crescente esquerda de seu partido, representado por esse vídeo viralizado de Bernie Sanders. O governo Biden ainda vai suar muito dentro do país. E isso lhe consumirá muito tempo, antes que possa olhar para a política exterior.
Principalmente, Joe Biden e o centro democrata terão diante de si um novo desafio, que talvez detone seus planos de sucessão futura. As mulheres, as negras, a esquerda cresceram, se organizaram, assumiram postos estratégicos e foram responsáveis pelo aumento da presença feminina e da juventude nas urnas. Nunca houve tantos votantes quanto nesta eleição. E esse crescimento se deve à ação dos que não fazem parte do stablishment que os dirigentes do Partido Democrata também integram.
As festas nas ruas, tomadas pela garotada, lembra à perfeição as do ascenso brasileiro dos anos 80 e as das primeiras grandes vitórias do PT nas capitais e no país. Não faltaram a cerveja, as bandeiras, os beijos, as lágrimas emocionadas de quem sente que está vivendo um momento histórico. Um “agora vai”.
The Squad
Bernard Sanders, de 79 anos, é socialista desde a universidade, em 1964, quando iniciou sua militância pelos direitos humanos e pela igualdade de direitos civis para os negros. Desde 1981 sempre se manteve como político sem partido. Cumpriu três mandatos de prefeito de Burlington, quatro de deputado federal e está no meio do quarto mandato como senador. Filiou-se ao Partido Democrata somente em 2015, porque pretendeu ser candidato à presidência dos Estados Unidos. Foi pré-candidato à presidência contra Hillary Clinton, em 2016, e contra Biden, neste ano, agora acompanhado de uma liderança jovem, negra, socialista, a deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez. Sua campanha foi sustentada por um forte movimento de juventude, de mulheres, de negros e de organizações de base progressistas. A adesão de jovens às suas propostas e sua mobilização para a campanha Democrata é uma das significativas novidades desta eleição, apontada por Bernie como sendo não só contra a direita representada por Trump, mas, principalmente, pela conquista da “democracia e o Estado de Direito em nosso país”.
A “turma” da pré-candidata a vice-presidente na chapa de Bernie é quem melhor representa a nova política norte-americana, evidentemente não WASP (brancos, descendentes de anglo saxões, protestantes – e homens), descendentes de negros e imigrantes, resistentes ao tradicional discurso da elite democrata. O crescimento desses novos quadros políticos demonstra o acerto de sua linha colada às lutas sociais de base. Simultaneamente, a sua votação esmagadora obriga o centro masculino e branco da política americana a entregar espaços de decisão a esses(as) novos(as) atores (atrizes) da política.
Alexandria Ocasio-Cortez (apelidada de “AOC”), negra de origem portoriquenha, agora com 31 anos, foi reeleita deputada federal pelo distrito do Bronx e Queens, em Nova Iorque, por 68,5% dos votos. É amada pelos jovens e integra um quarteto poderoso de deputadas negras, apelidado de “O Esquadrão”. Ilhan Omar, muçulmana, reelegeu-se com 64,5% dos votos do Minnesota. Rashida Tlaib, também muçulmana, venceu com 67,5% no Michigan. E Ayanna Pressley levou 85% dos votos de Massachusetts. Odiadas por Trump e a direita, constantemente atacadas por parlamentares republicanos, integram a tendência interna dos Democratas chamada Democratic Socialists of America, da qual participa também a atriz branca Cyntia Nixon (a Miranda, da série de TV Sex in the city), que foi pré-candidata a governadora por Nova Iorque, fazendo o enfrentamento interno aos “democratas corporativistas”.
Além delas, ponta mais visível, há uma profunda transformação da representação no Congresso norte-americano. Desde 1981, o número de mulheres aumenta eleição a eleição. Nesta próxima legislatura, serão 135 na Câmara (as republicanas serão 32) e provavelmente 24 no Senado. Ainda pouco, diante dos 50,8% de mulheres no país, mas já é um quarto nas duas câmaras. A representação negra também aumenta regularmente. Na Câmara Federal, as negras ocupam 44 das 435 vagas (apenas duas são republicanas) e têm três senadoras democratas. Há vários(as) parlamentares assumidamente GLTB – uma senadora trans. Não temos aqui a conta de quantos desses são filhos de imigrantes, mas esta é a evidência de que a nova base social norte-americana está desistindo de buscar representantes tradicionais no Parlamento e decidiram apresentar-se diretamente com sua voz. E crescem sem parar.
Hoje, a base política da esquerda dos Democratas – que exibiu sua musculatura nesta eleição decisiva – é a juventude, negros, mulheres, trabalhadores, organizações de base progressistas, movimentos sociais. E tratam de estreitar suas relações com os movimentos em outros países, como mulheres na América Latina e na Índia. Há poucas semanas, a referência histórica negra, feminista, da esquerda americana, Angela Davis, disse que elas precisam integrar-se ao movimento das mulheres do Brasil e reivindicar a herança de Marielle Franco. (Vídeo “Their democracy and ours”, com Angela Davis and Astra Taylor).
O vídeo de Bernie Sanders apresenta a pauta programática dessa base social e dessa nova representação política da esquerda americana que a liga à esquerda mundial. Ali estão o sistema de saúde público e universal, leis de proteção ao emprego, ensino público em todos os níveis, fontes de energia limpa, redução das desigualdades sociais, impostos mais altos para os mais ricos e para as grandes corporações.
E, claramente, é um bloco contrário à política intervencionista bélica dos Estados Unidos no exterior, a que a direção dos Democratas apóia.
“Após a vitória de Biden, nossa luta continua”
Para Bernie e Alexandria “OAC” abandonarem sua pré-candidatura e participarem da campanha de Biden, o preço foi a incorporação do programa dos socialistas. O vídeo de Bernie na semana passada trata disso: https://www.youtube.com/watch?v=2z9Vue-u1eI&t=233s.
Quando todos ainda estavam atentos à contagem dos votos da Pensilvânia, Geórgia, Arizona e Nevada, Bernie sublinhou o peso para a vitória das “organizações de base progressistas em todo o país”, que “construíram um amplo apoio a Biden entre os jovens, pessoas de cor e a classe trabalhadora de nosso país”. Como disse o senador, os jovens foram “às urnas e ao processo político. As últimas estimativas que vi mostram que mais de 53% dos jovens de 18 a 29 anos votaram, o que não apenas eclipsa a taxa de participação de 2016, mas seria a maior taxa de participação de jovens na história americana. Em minha opinião, o sucesso de Biden não teria sido possível sem os esforços extraordinários deles”.
E então, ele dá mais um puxão na corda e anuncia que proporá um pacote de projetos emergenciais para ser aprovado em 100 dias após a posse do novo Senado. O observador atento perceberá que as propostas mesclam temas relativamente consensuais e temas que são bandeiras da esquerda. A seguir algumas das considerações de Bernie para construção da agenda:
- Acabar com os salários de fome o que tornará mais fácil para os trabalhadores ingressarem em sindicatos e possibilitará o pagamento igual para trabalho igual. Este ingresso no mercado formal de trabalho criará milhões de empregos nas obras para reconstrução da infraestrutura em ruínas;
- Tornar a saúde um direito humano e avançar para um programa de saúde para todos;
- Reduzir os “preços indecentes dos medicamentos neste país”;
- Possibilitar que todos os jovens da classe trabalhadora tenham uma educação universitária sem necessidade de endividar-se;
- Eliminar as disfuncionalidades do sistema de cuidados infantis;
- Liderar o mundo no combate às mudanças climáticas e na transformação do sistema americano baseado na energia do combustível fóssil, adotando metas de eficiência energética e energia sustentável, transformação que irá gerar milhões de bons empregos;
- Exigir que as pessoas mais ricas e as maiores corporações da América comecem a pagar sua parte justa dos impostos;
- Enfrentar o racismo sistêmico que prevalece em todo o país, assim como no sistema de justiça criminal falido e racista; e
- Reformar a política de imigração, abrindo o caminho para concessão da cidadania dos indocumentados.
Biden registrou o golpe. Nesta segunda-feira anunciou seu pequeno pacote, somente com aquilo que o centro partidário concorda da proposta dos socialistas: ações de recuperação dos estragos causados pela Covid-19, ações para a recuperação econômica, redução dos impactos do desemprego, retomada das ações para mudanças climáticas que detenham o aquecimento global.
O jogo das pressões e contrapressões manterá Joe Biden envolvido com os problemas internos por muito tempo. E, certamente, terá muitas dificuldades para manter-se, dentro do país, à direita do centro. Na política externa, seu problema será a retomada de relações com o bloco europeu, negociações com a China, reatamento com o OMS e com a ONU. A questão ambiental será dominante de imediato – donde se esperam pressões sobre Jair Bolsonaro, nominalmente citado na campanha como um mal a ser enfrentado.
E, certamente o Brasil e a Colômbia não serão convocados a invadir a Venezuela.
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Terapia Política sugere que assistam esta coletânea de trechos de seus discursos nos últimos 30 anos: “30 Years of Speeches” (Inglês 8:59).