Preciso ser franco: o mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico – e o preço desse fracasso será pago com vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo. (Tedros A. Ghebreyesus, Diretor Geral da OMS – 2021)

A esta altura, já está mais do que claro que a pandemia chamada Covid-19, sua compreensão e seu enfrentamento, vão muito além da interação de um novo patógeno e os humanos. O seu desenvolvimento sugere um processo de altíssima complexidade, com a existência de várias dimensões entrelaçadas (biomédica, clínica, fisiopatológica, epidemiológica, informacional, simbólica, etc.) ao lado de uma demonstração categórica dos limites da ciência – mormente as do campo biomédico – no seu enfrentamento.(1)

Esses limites foram ainda mais claramente tensionados quando da entrada em cena da primeira e única intervenção farmacológica capaz de mitigar os seus efeitos – as vacinas. Ao lado da façanha do desenvolvimento e produção de vários imunizantes eficazes em prazo jamais observado na história – uma vitória da ciência e da tecnologia – o que vem se seguindo é uma disputa feroz por mercados e poder político que nada tem de científica e cuja resultante é uma crescente onda de iniquidade em relação ao uso racional daquela conquista da ciência.

Não parece ser o melhor caminho compreender essa disputa “não científica” como um evento externo ao desenvolvimento da pandemia. Pelo contrário, tanto quanto o estudo da interação patógeno-hospedeiro, ela faz parte da sua dinâmica e aquelas disciplinas que tratam desse tipo de conflito adquirem um papel central na análise do fato pandêmico. Daí a importância do olhar da bioética.

Ao longo de 2020, a pressão sobre os componentes de alta complexidade dos sistemas de saúde pelo mundo afora já vinha exigindo explicações e intervenções bioéticas postas pelos dilemas morais nascidos do desequilíbrio entre oferta e demanda de dispositivos essenciais para a assistência ventilatória e outros componentes do acompanhamento clínico. Nesse contexto, profissionais de saúde, no mais das vezes despreparados por equívocos de formação, muitas vezes não lidaram da melhor maneira em relação ao dilema de “quem deve viver, quem deve morrer”. Profissionais com melhor formação ou que tiveram algum tipo de assessoria bioética acessível saíram-se melhor, num enquadramento principialista que, neste plano, deve ter sido eficaz na maioria dos casos.

Mas a chegada da vacina alterou essa situação. Não mais se tratava de escolhas entre indivíduos ali à vista, com nomes e CPF’s, mas sim de um acesso potencial que dizia respeito a milhões de indivíduos sem face. Como o olhar bioético poderia dar conta dessa nova situação? A tradicional bioética principialista, cujo foco de reflexão e intervenção é centrada nas relações entre agentes morais individuais, costuma passar ao largo do tratamento desse tipo de dilema.

Importante contribuição teórica e prática ao campo da bioética vem sendo, desde o início deste século, a bioética de proteção. De um modo sintético, aquela contribuição fundamenta-se em um diagnóstico de crescentes desigualdades sociais e políticas na dimensão norte-sul bem como domésticas e, consequente a isso, propõe uma expansão do pensar e agir bioéticos para o âmbito coletivo da saúde pública, das biotecnociências, da biopolítica e da globalização.

Além desse eixo vertical “norte-sul”, a bioética de proteção igualmente expande-se, horizontalmente, do humano para todos os sencientes e para o decisivo problema ambiental. (2 e 3) Outra vertente crítica à abordagem principialista deriva do que seria uma necessidade de promover uma ‘decolonização’ da disciplina nascida no Hemisfério Norte, na perspectiva teórica de Anibal Quijano retomada mais recentemente por Boaventura Santos e outros autores, inclusive entre nós. (4 e 5)

A sugestão que aqui se coloca é a de uma abordagem bioética da dinâmica científica, tecnológica, produtiva e comercial das vacinas contra o SARS-CoV-2 que leve em conta, além das distinções culturais e sociais presentes em coletivos humanos, o exame desses coletivos quando organizados naquela modalidade de segmentação geográfica que desde o final do século XVI e consagrada no XVII na Europa, preside a organização política do mundo – os Estados nacionais.(6) Isso porque o traço mais característico da dinâmica das vacinas durante a pandemia foi uma intensa batalha geopolítica pela liderança no desenvolvimento, produção e comercialização de vacinas, cujo resultado tem sido um enorme diferencial no atendimento às necessidades dos países. Essa iniquidade de atendimento coloca desafios bioéticos evidentes, envolvendo empresas, países e organismos multilaterais.

Os dilemas éticos no campo das vacinas contra o SARS-CoV-2 são inúmeros e óbvios. Começaram durante as etapas finais de desenvolvimento dos produtos (ensaios clínicos de fase três) quando a potência hegemônica (EUA) e seus dois concorrentes mais próximos (China e Rússia) estabeleceram uma guerra para saber quem chegaria em primeiro lugar no registro de uma vacina: a “sua” vacina.(7) Demonstrações explícitas de soft power que, se por um lado não causaram diretamente morte e sofrimento, no mínimo contribuíram para o enfraquecimento das propostas da Organização Mundial da Saúde (OMS) no sentido de, durante a pandemia, considerar todas as vacinas produtos de uso universal ausentes de reivindicação de direitos de propriedade.

Mas, o completo desastre ético veio a ocorrer quando, após o lançamento das primeiras vacinas, foram estabelecidas determinações governamentais que interditaram exportações de vacinas enquanto a vacinação de todos os seus respectivos nacionais não fosse completada. Ainda mais, quando vieram à luz partes dos termos dos contratos de compras antecipadas de vacinas por países do Hemisfério Norte. Contratos que revelaram compras de quantidades de vacinas suficientes para imunizar entre duas e cinco vezes as populações dos países contratantes enquanto a maioria dos países do mundo foram para o fim de uma fila que não se conhece com precisão onde e quando termina. Empiricamente, os efeitos dessa repartição iníqua podem ser observados no cronograma gravemente contingenciado do mecanismo OMS/COVAX, destinado a fornecer vacinas gratuitas ou muito subsidiadas aos países de renda média baixa e renda baixa.

Esse panorama revela uma dupla ferida ética. Por um lado, uma ferida nascida em decisões governamentais e orientada pela divisão irrecorrível do poder global. O debate sobre a organização e dinâmica desse poder, em paralelo ao ponto de vista já mencionado das Epistemologias do Sul (decoloniais) tem sido objeto de outra abordagem teórica sobre as relações interestatais em curso no planeta. Entre outros, no Brasil, destaca-se a obra de José Luís Fiori sobre o tema.

A segunda ferida ética diz respeito a mais uma reiteração das regras que presidem as decisões de um setor industrial cujas práticas comerciais talvez só sejam comparáveis às da indústria de armamentos. Vale lembrar que, nas últimas décadas, a indústria de vacinas foi quase completamente absorvida pela Big Pharma, que atualmente responde por cerca de 75% do mercado mundial de vacinas.

Essa dupla ferida coincide no fato de que esses governos e empresas se localizam, de modo geral, nos mesmos países.

Vale notar ainda que essa dinâmica radicalmente iníqua na encomenda de vacinas ainda em desenvolvimento terminou por estabelecer um intenso desequilíbrio entre a capacidade produtiva das empresas e a demanda estabelecida nos contratos antecipados. Isso vem provocando em boa parte dos países a necessidade de contingenciar os seus próprios programas nacionais de imunização. Não apenas nos “do Sul”, mas também em muitos “do Norte”.

A pandemia de Covid-19, ao lado da tragédia mundial de casos, mortes e derrocadas de serviços de saúde, está oferecendo um terreno concentrado no tempo e na intensidade para um debate sobre o papel da bioética nas relações internacionais no que se refere à saúde. Vários tópicos que interessam a esse debate vêm sendo tematizados por esse campo de prática chamado Saúde Global que, tal qual a bioética, trabalha com categorias tais como justiça, equidade, solidariedade, etc., naquele caso entre nações. Dito de outro modo, a saúde global pode ser considerada um campo de atuação no qual conceitos da bioética adquirem maior proatividade e oportunidades de intervenção.

As intervenções dos intelectuais e ativistas da saúde global costumam orientar suas reflexões e práticas na direção de dois grandes alvos: os organismos multilaterais por um lado e os blocos plurinacionais por outro. No caso em questão, destacam-se, no primeiro alvo, a OMS e no segundo os BRICS. Na perspectiva de uma interação mais intensa dos bioeticistas de proteção com os especialistas da saúde global, cabe uma breve reflexão sobre aqueles dois alvos.

Quanto à OMS, há bastante tempo e no ambiente de desmonte da arquitetura multilateral do pós Segunda Guerra, ela vem sendo penetrada cada vez mais por interesses que nem sempre refletem noções adequadas de justiça, equidade e solidariedade no interesse do conjunto dos países-membros. Os debates que foram travados na OMS desde a década de 1970 a respeito das condições de distribuição e uso de produtos industriais de saúde são exemplos marcantes.

Dentre eles destacam-se a elaboração das listas nacionais de medicamentos essenciais e, mais tarde, os impactos das regras de propriedade intelectual trazidas pelo TRIPS no acesso a esses medicamentos essenciais. Não obstante, em momentos críticos como o que o mundo hoje vive, e dada a selvageria de governos e empresas, a atuação da OMS reveste-se de grande importância como, por exemplo, foi o lançamento da iniciativa COVAX. Ao lado da proposta derrotada, aqui já mencionada, de considerar produtos contra a Covid como isentos de direitos de propriedade, a COVAX foi a mais importante iniciativa a se contrapor à completa hegemonia dos centros de poder global e das empresas biofarmacêuticas que dele se nutrem.

Quanto aos BRICS, pelo menos no campo da saúde, eles talvez já tenham cumprido mais eficientemente um papel de “contrapoder global” quando observamos sua atual configuração e atuação. Não obstante, liderados pela Índia – ator global no terreno de medicamentos e vacinas – este bloco vem tendo também um papel positivo, revelado principalmente pela sua proposta de 2020 levada em conjunto com a África do Sul à Organização Mundial do Comércio visando o licenciamento patentário voluntário de vacinas antiCovid. Proposta derrotada pelo voto dos países do Hemisfério Norte, detentores da maioria das patentes no mundo e, vergonhosamente, acompanhada pela diplomacia brasileira.

Vislumbro que os bioeticistas em suas organizações, articulados com os profissionais que trabalham com saúde global podem explorar esses dois caminhos para atuar globalmente. O primeiro deles é atuar em prol do fortalecimento da arquitetura multilateral, em particular a OMS. O segundo é atuar em favor do fortalecimento dos BRICS, junto a outros países do Sul. A despeito de eventuais interesses divergentes entre os membros do bloco, sempre haverá espaço para diálogo e cooperação. Nossa maior dificuldade será a muito baixa respeitabilidade global do Brasil atualmente. Daí resulta que será necessário, neste momento, explorar caminhos extragovernamentais capazes de propiciar essa articulação.

Referências:
(1) Guimarães, R. – Vacinas Anticovid: um Olhar da Saúde Coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9):3579- 3585, 2020.
(2) Schramm, FR – A Bioética de Proteção é Pertinente e Legítima? Rev Bioét (impr) 2011; 19(3):713-24.
(3) Schramm, FR – A bioética de proteção: uma ferramenta para a avaliação das práticas sanitárias? Ciência & Saúde Coletiva, 22(5):1531-1538, 2017.
(4) Santos, BV et al.(orgs) – Epistemologias do Sul. Edições Almedina SA. Coimbra, Portugal. 2009.
(5) Garrafa, V. et al – Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saude soc. vol.25 no.2 São Paulo Apr./June 2016.
(6) Fiori, JL – O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Pp.83- 84.
(7) Guimarães, R – Saúde e Poder: A Guerra das Vacinas. 2020.

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