O filme “Blue Jean” retrata a vida dupla de uma mulher na Inglaterra heteronormativa da Dama de Ferro, em brilhante atuação de Rose McEwen
Inglaterra, 1988. O governo do Partido Conservador, liderado por Margaret Thatcher, aprova a Seção 28, também conhecida como Cláusula 28, que proíbe as autoridades do Reino Unido de “promover” a homossexualidade. Para justificar essa lei, a então primeira-ministra mente: acusa os ativistas queer de querer levar às escolas livros sobre o “ensinamento” e a “normalização” do relacionamento homoafetivo. A iniciativa amplia de forma significativa o estigma sobre esses grupos minoritários. Nas ruas, outdoors escancaram o perigo que os homossexuais representam para a moralidade pública, enquanto rádios e TVs reverberam os ataques contra gays e lésbicas e a favor do papel sacrossanto do homem e da mulher.
Atacada em seus direitos individuais, políticos e sociais, à comunidade LGBTQIA+ restam duas opções: encarar de frente a luta contra o mundo heteronormativo insuflado pela Dama de Ferro e seus pares ou levar uma vida dupla e administrar o risco e o medo de ser exposta, ameaçada e até violentada. Jean (Rose McEwen), protagonista do poderoso drama britânico “Blue Jean” (2022) – premiado no Festival de Veneza e no British Independent Film Award –, escolhe a segunda opção. E tenta se equilibrar entre duas vidas. Na primeira, é professora de educação física em uma escola onde é respeitada pelos alunos e colegas. Na outra, é namorada de Viv (Kerrie Hayes) e frequenta em segredo um bar lésbico.
Para Jean, essa dualidade não é nada confortável. Mas enxerga as restrições impostas a ela por uma sociedade machista e preconceituosa como um mal tolerável. Por isso faz vista grossa aos comentários dos colegas de escola que defendem a Seção 28, da mesma forma que ignora piadas homofóbicas entre as alunas. E assim Jean leva sua vida dupla de um jeito não tão satisfatório quanto gostaria, mas de certo modo, ao menos em parte, feliz. Até o dia em que se depara com uma de suas alunas, Lois (Lucy Halliday), no bar que ela frequenta – um segredo que, se revelado, pode destruir sua carreira. A partir desse encontro, sua aparente tranquilidade dá lugar a um estado de permanente tensão e autocensura.
O AZUL E O ARMÁRIO
Para criar Jean, a diretora Georgia Oaklay – em seu primeiro longa, no qual também assina o roteiro –, faz um elaborado estudo de personagem. E sai da zona de conforto ao se recusar a resumir à trama a uma simples vitimização das lésbicas atingidas pela Cláusula 28. A brilhante atuação da britânica Rosy McEwen contribui ainda mais para a riqueza de sua personagem. Com seu rosto expressivo, de cabelos curtos, pintados de loiro, Jean irradia sua inquietude através do olhar, de olhos bem azuis, e de movimentos serenos e ponderados.
Como os olhos de Jean, o azul predomina em cada cena do filme, seja no banheiro, nas paredes e nas roupas da personagem, seja na escola, nas ruas ou na casa de sua irmã – uma cor associada à tranquilidade, serenidade, harmonia e espiritualidade, mas também à frieza, monotonia e depressão. Em “Blue Jean”, o azul oprime, sufoca e condena a professora a viver dentro do armário por temer as consequências de se assumir como realmente é. Para se preservar e proteger seu emprego, ela não só adota a cultura do armário como acaba se colocando do lado, ainda que involuntariamente, daqueles que a oprimem.
Na escola, Jean é técnica de netball, uma versão de basquete feminino em que a jogadora não pode se mover ao receber bola – outra sacada genial de Oaklay. Jean vai se mexer ou permanecerá imóvel? Notará que a bola está em suas mãos, que pode fazer com ela o que bem entender, ou tenderá a se livrar da bola? Assumirá ou não o direito de desrespeitar as regras de um jogo que não a respeitam? No início do filme, na quadra de netball, Jean pergunta à turma: “Alguém sabe o que é lutar ou fugir?” Ela falava às alunas do instinto, de o corpo responder ao pressentir o perigo. Diante dos perigos da vida, Jean aparenta fugir.
AS CORES DA LIBERDADE
Já as amigas de Jean rejeitam o conformismo da professora, vivem plenamente sua sexualidade e adotam o confronto direto contra a caretice, o preconceito e a homofobia reinantes. Apesar do estado opressor, são mulheres felizes e bem resolvidas. Viv (Kerrie Hayes), namorada de Jean e lésbica assumida, não esconde o incômodo causado pela vida dupla da parceira: “Você se dá conta de que certos programas de TV são feitos apenas para nos distrair do que realmente está acontecendo?” A professora brinca, chama Viv de teórica da conspiração e diz que nem tudo é política. “Claro que é”, retruca a outra. Jean sabe que sim, e à medida que a repressão se intensifica – nas ruas, nas rádios, nas TVs, no próprio ambiente de trabalho e até na casa da irmã – o armário se torna cada vez mais sufocante.
Assim como Viv, Lois vive sua sexualidade numa boa. Mesmo que seja uma adolescente lésbica sem apoio ou referência, deslocada das demais alunas, e sofra bullying na escola. Sua arrogância juvenil de achar que sabe tudo, de recusar o armário e assumir sua condição sem disfarces, incomodam a professora: “Se é isso o que você quer, lute. Mas não contra.” Porque Jean acredita em outro tipo de luta. Viv não. Em uma cena no bar, ela questiona a namorada: “Que tipo de exemplo você está dando para essa garota?” Jean, com gestos sempre contidos, dispara: “Só porque não exibo minha sexualidade como um distintivo de honra?”. Antes de largá-la sozinha, Viv a questiona outra vez: “Como essa menina vai aprender que tem um lugar no mundo se principalmente você (lésbica e professora) disser que ela não tem?”
O VERMELHO E A LUTA
Se Viv e Lois encaram o preconceito de frente, Jean assume a neutralidade. Não se trata, contudo, de uma atitude covarde. Escolher o armário, longe de ser um privilégio, tem seu preço. Não é nada fácil engolir calada piadas homofóbicos, ataques recorrentes a gays e lésbicas e ter que conviver lado a lado, boa parte do dia, com o opressor. De todo modo, quando a situação já parecia insustentável – com a relação abalada, problemas na escola e sem forças para representar seu duplo papel –, Jean esboça uma reação. Em um encontro na casa da irmã e do marido, um amigo do casal, depois de alguns comentários infelizes e piadas de mau gosto, pergunta se ela tem namorado. Jean responde com sua aparente serenidade habitual: “Não, não tenho, sou lésbica.”
Além da rica construção da personagem principal, “Blue Jean” faz um ótimo retrato do que foi, para uma lésbica, viver na Inglaterra sob o comando da abominável Dama de Ferro. Era preciso muita força para suportar o desrespeito, a opressão e agressões de toda ordem. Ainda assim, havia resistência e felicidade. Como no bar frequentado por Jean e suas amigas, um dos poucos ambientes do filme em que o azul se perde em meio às cores da liberdade. Ou no banheiro do bar, onde um vermelho vivo, intenso, domina o cenário. Um vermelho de sangue nas veias, de atitude e coragem para enfrentar o preconceito e a heteronormatividade que marcaram a era Thatcher.
ONDE ASSISTIR: Apple TV, Google Play, Now. Clique para assistir o trailer oficial.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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