Os candidatos do Movimiento al Socialismo (MAS), Lucho Arce e David Choquehuanca obtiveram mais de 55% dos votos válidos na eleição de 18 de outubro, contra cerca de 29% do segundo colocado – uma diferença superior a 20 pontos percentuais. Ora, as regras que regem as eleições presidenciais bolivianas estabelecem que para um candidato vencer no primeiro turno é necessário obter mais de 40% dos votos válidos, com uma diferença maior do que 10% entre ele e o segundo colocado.
Esse resultado espetacular, não previsto por nenhuma pesquisa, além de servir de alento à luta e à resistência de toda a esquerda, em especial a latino-americana, tem também o mérito de desconcertar a reação oligárquica e golpista local.
Se a diferença entre o candidato do MAS e o da Comunidad Ciudadana, Carlos Mesa, não tivesse sido tão significativa, estaríamos assistindo neste momento a lamúrias e acusações de fraude semelhantes às de outubro de 2019, que tiveram como desfecho um golpe patrocinado pela oligarquia e setores fardados, “com a OEA e com tudo”.
O MAS supera sua votação de 2019 (47,08%), obtendo nesta eleição um percentual similar ao logrado em 2005 (53,72%), quando pela primeira vez se constituiu um governo originário, corrigindo uma falha histórica no país. O percentual , no entanto, é inferior aos obtidos em 2009 (64,22%) e 2014 (61,36%).
Durante os 14 anos de governo do MAS, houve uma estabilidade jamais vista ao longo dos quase 200 anos de República na Bolívia e mais de 100 quarteladas. Um dos fatores que garantiram a democracia durante este período foi o modelo de crescimento econômico baseado na inclusão, distribuição de renda e no volume expressivo de investimento público em prioridades sociais.
Pela primeira vez, houve a inclusão das comunidades historicamente excluídas da vida pública e da tomada de decisões nacionais. A possibilidade de finalmente ser alcançada a dignidade para todos e a melhoria dos sistemas de saúde e educação deram a vitória ao MAS nas eleições de 2009 e 2014, com ampla vantagem sobre o segundo colocado. Embora muitas vezes os resultados sejam identificados com a figura da liderança, Evo Morales, eles realmente foram fruto de um amplo esforço do partido e dos movimentos sociais.
Neste processo, a condução do país pelo MAS teve mais acertos que erros. Entre os erros, um dos mais graves foram os desatinos ambientais, cujo símbolo foi a autorização da construção de uma estrada no interior do santuário ecológico conhecido como TIPNIS, mesmo contrariando a vontade dos povos originários. Também não foi bem aceito o aparelhamento de várias organizações sociais. O estilo centralizador de gestão, por sua vez, levou vários quadros importantes da vida pública a saírem do movimento, alguns sendo forçados a isso. Porém, o que causou maior desgaste ao MAS, foi Morales ter desconhecido o resultado do referendo que o impedia de postular mais uma vez a Presidência.
Nesta eleição de 2020, a votação obtida pelo MAS foi superior à votação de 2019. Por quê? E que desafios ela impõe?
Uma das chaves para avaliar o pleito é entender que, além da dicotomia esquerda x direita, a Bolívia convive com um problema histórico de racismo e regionalismo, não superado nem mesmo com a chegada dos povos originários ao poder.
O patético ato de entrega da carta de renúncia patrocinado por Fernando Camacho, de joelhos no chão e Bíblia na mão, enquanto clamava pela volta de um Deus expulso da Bolívia pela esquerda (sic!), foi o início de uma série de atitudes primitivas dos golpistas de 2019. Juntos vieram a queima de prédios, as mortes, as agressões e a queima da Wiphala.
O primeiro governo de Morales foi duramente atacado e esteve na corda bamba por pressões separatistas e autonomistas animadas principalmente pelas oligarquias dos departamentos (estados) chamados na época de meia lua: Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija. Somente quando Morales anulou literalmente os governadores desses departamentos e acabou com um movimento separatista, que contava inclusive com milícias internacionais, é que ele começou efetivamente a governar e ver seu prestígio crescer, inclusive pela força demonstrada naquela oportunidade.
Movimentos estratégicos bem-sucedidos de povoamento paralisaram as oligarquias desses departamentos, principalmente as de Pando e Santa Cruz.
O MAS ganhou em todos os departamentos habitados pelo que Darcy Ribeiro chamava de povos-testemunho: La Paz, Cochabamba, Potosí, Chuquisaca (contra as previsões de boca de urna) e Oruro, cuja população tem majoritariamente ascendência aimará e quéchua. Se somarmos os votos do estrangeiro e de Pando, onde também foi vitorioso, estamos falando de uma vitória num universo de quatro milhões e oitocentos mil votantes habilitados, de um total de sete milhões e trezentos mil.
Camacho, de extrema direita e queimador de Wiphalas, teve uma votação pífia nos departamentos de maioria originária, entre 0,7% (La Paz) e 2,8% (Potosí). O resultado é uma mensagem importante dada pelo povo boliviano: “Não zombem de nossa cultura ancestral”.
O segundo colocado, Carlos Mesa, é bem mais moderado e culto do que Camacho. Seu desempenho foi inferior ao de 2019, pois venceu apenas em Tarija e Beni, mas em percentuais não muito superiores aos do Movimiento al Socialismo. Apesar de se declarar líder da oposição, demonstra pouca energia para a disputa política.
De toda forma, o fato de Mesa ter ficado em segundo lugar mostra uma grande rejeição do povo boliviano à extrema direita, que manifestou, de uma maneira geral, seu descontentamento com o golpismo, com a falta de competência e com a prepotência do governo que sai.
O ministro de governo de Jeanine Áñez, Arturo Murillo, uma pessoa truculenta e antidemocrática, tornou-se o símbolo da gestão anterior e, certamente, será responsabilizado pelos descalabros cometidos pela direita local nestes nove meses de governo.
Mas nem tudo são flores. Camacho, conhecido como o Bolsonaro boliviano, teve uma votação importante em Santa Cruz, algo em torno de 45% contra os 36% obtidos pelo Movimiento al Socialismo. E como se sabe, Santa Cruz é um estado-chave da economia boliviana e o segundo colégio eleitoral do país. A votação do candidato de extrema direita também foi significativa em Beni (24%), Pando (26%), no exterior (12%) e em Tarija (5,4%).
Todos os alertas devem estar ligados, pois cerca de 14% da população votou em Camacho, apesar de ser voz comum que sua liderança não tem futuro e provavelmente será esvaziada nas próximas eleições locais. Todo o cuidado é pouco com o discurso populista de direita.
O MAS tem, pela segunda vez na sua curta história, a oportunidade de demonstrar capacidade de governar. Desta vez, o desafio é ainda maior, porque será um elemento importante de referência no continente, especialmente para o Brasil, onde o golpe interditou a democracia e produziu um acidente com desfecho imprevisível.
Os presidente e vice-presidente, pelos seus históricos políticos e pessoais, parecem se complementar perfeitamente. Lucho Arce, ex-ministro da Economia durante todo o período em que o MAS governou pela primeira vez, conhece os meandros da economia boliviana e saberá reverter a calamitosa situação que herda dos golpistas, mesmo diante do cenário adverso da crise sanitária.
Provavelmente receberá o apoio da Argentina, o segundo maior parceiro comercial da Bolívia, porém não se sabe como serão as relações com o principal parceiro – o Brasil. Conta a favor de uma relação pragmática a dependência brasileira do gás importado, fundamental para a indústria brasileira.
Arce sempre agiu mais como técnico do que como político, não tendo demonstrado, durante todo o tempo em que foi ministro, ambições ou atração excessiva pelos holofotes. Essa característica pode ser importante neste momento em que é necessário manter o foco na reconstrução e pacificação nacionais. Neste sentido, ele favorece a retomada do projeto de consolidação de uma indústria que possa aproveitar o produto estratégico do subsolo andino, o lítio, não apenas na sua modalidade extrativa, mas agregando valor.
No plano político, o comportamento de David Choquehuanca será decisivo para retomar o diálogo com setores da esquerda tradicional, de ambientalistas e outros que se afastaram do MAS, com muitas críticas que não devem ser desprezadas, inclusive a crítica a uma pretensa ditadura racial inversa. Na verdade, esta capacidade de diálogo do vice-presidente é considerada decisiva na melhora do resultado eleitoral em 2020, comparativamente aos resultados obtidos pelo próprio Morales, em 2019.
Choquehuanca é humilde e prudente. Foi um dos precursores das teorias do Buen Vivir, que propugnam a comunhão entre a produção, a harmonia e o respeito à natureza, a Pacha Mama. Mesmo sabendo que teorias de gênero não são encaradas como prioritárias quando há problemas básicos a resolver, o MAS fez menos do que poderia sobre este tema. Ainda restam resquícios fortes de machismo, prepotência e falta interesse nas questões ambientais. Quem sabe Choquehuanca consiga avançar também neste sentido. E ele tem experiência, pois já foi ministro das Relações Exteriores quando estabeleceu relações importantes mundo afora.
Estas características dos novos governantes eleitos serão importantes em suas relações com o Poder Legislativo. Nos dois últimos governos antes do golpe, o MAS detinha mais de dois terços do Senado. Pelos resultados obtidos na eleição de 2020, o MAS terá ampla maioria nas duas casas legislativas, mas não os dois terços em nenhuma delas.
Uma discussão que já movimenta a Bolívia, e a oposição faz questão de repercutir, é sobre o papel que terá Evo Morales. Caberá ao próprio Evo mostrar sua estatura para não ser mais um elemento perturbador. Se depender da direita, ela tentará tomar a pauta governamental com a discussão sobre o destino do ex-presidente. O que não ajuda a Bolívia, nem o próprio Evo.
Os novos governantes eleitos, inclusive pelo seu estilo discreto (pelo menos até então), precisam de um ambiente tranquilo e favorável para iniciar o novo governo com autonomia e autoridade. A vontade de protagonismo de Morales não seria oportuna neste momento. Evo tem que observar como Cristina Kirchner vem saindo paulatinamente da cena principal da política argentina, em benefício de Fernández. Tem que observar a humildade de Lula, mesmo ao enfrentar seus maiores algozes.
A Bolívia é um país instável, conflitivo, com uma elite racista, atrasada, que não aceita os povos originários na cena pública. Sentiu e acusou o duro revés das urnas, mas não ficará tranquila até recuperar o poder desfrutado por tão pouco tempo depois de 14 anos de governo popular.
Além disto, outro elemento que poderá contribuir para a instabilidade são os interesses externos nos recursos nacionais estratégicos, leia-se no lítio, aliás, verbalizados sem pudor por Elon Musk, dono da Tesla (carros elétricos) e da Space X. Esta é outra das mensagens recebidas do povo ao depositar seu voto nas urnas: “Tirem as mãos do lítio!”.
Um assunto que deixo para aprofundar num próximo artigo é o desafio de recuperar a liderança sobre as forças militares e policiais, muito bem tratadas nos governos de Evo, mas que mudaram de lado em 2019.
Todo cuidado é pouco, mas que está sendo bonito, ah, isso está!