Apesar de um amplo espectro de lideranças conservadoras darem sinais de que pretendem viabilizar uma transição negociada e construir um nome alternativo para a direita, Bolsonaro luta desesperadamente para impedir o surgimento de qualquer alternativa ao seu nome. A convocação de um ato público para tentar transformar em perseguição política as investigações em curso – que já reuniram um conjunto de provas insofismável da conspiração golpista arquitetada no próprio gabinete presidencial -, serviu mais para mostrar a incapacidade de Bolsonaro em continuar hegemonizando o amplo campo conservador e reacionário que ele conseguia galvanizar nos últimos anos.

A amplitude desse campo foi tal, que atraiu apoio político e social suficiente para reger a afinada orquestra que executou o golpe, retirou Dilma do governo, impediu Lula de concorrer e guindou um abjeto admirador de torturadores à presidência da república. Uma trama complexa como esta se tornou possível apenas em razão da ampla penetração do bolsonarismo em algumas das principais estruturas do Estado, notadamente no sistema de justiça e nas forças de segurança. Algo que exige medidas profiláticas rigorosas em defesa da democracia, este tema não será desenvolvido neste artigo.

O ato realizado na Av. Paulista mostra pelo menos duas coisas relevantes: (a) Bolsonaro quer reafirmar a sua liderança e não deseja viabilizar qualquer alternativa ao seu nome; (b) a sua base social está se estreitando aos segmentos da ultradireita política e aos setores subordinados ao domínio de lideranças pentecostais, como o protagonismo financeiro e político de Malafaia na sua organização tornou claro.

Independente do número de pessoas reunidas, o ato mostrou que Bolsonaro não é mais um líder em cuja proximidade todos desejam estar e queiram ostentar. Por exemplo, apenas quatro governadores estiveram presentes: Tarcísio de Freitas (SP), Ronaldo Caiado (GO), Jorginho Mello (SC) e Romeu Zema (MG) e 94 deputados, mostrando que há muita gente querendo ficar distante e não deseja compartilhar fotos com o mito, apesar de Bolsonaro e sua entourage terem jogado pesado para cobrar o apoio dado aos líderes eleitos com o seu suporte e terem constrangido possíveis dissidências.

A fala de Malafaia é o melhor exemplo da atmosfera reinante na manifestação. Enquanto ele repetia a ladainha conhecida contra o STF e chamava as investigações contra os golpistas como perseguição política, um a um dos governadores presentes foi se afastando dele e chegaram a descer do palanque, procurando se distanciar do discurso que esposavam até pouco tempo atrás. O líder religioso e um dos principais financiadores do ato em defesa dos golpistas mostrou que sentiu o abandono e vociferou contra os aliados: “Cambada de frouxos, covardes e X9. São caras que estão ali, mas não estarão ali. Eles desceram porque são frouxos” (Metrópeles), fazendo exceção ao governador Tarcísio por não ter “compactuado com a molecagem”, mesmo que o governador de São Paulo tenha feito questão de demonstrar algum desconforto.

Ou seja, mesmo em um ato destinado a demonstrar força e unidade política para viabilizar as condições para uma anistia política aos já condenados e aos que deverão chegar à prisão pelo caminho pavimentado por fartas provas, as principais lideranças já não conseguem mais transitar à vontade em espaços nos quais costumavam atuar como verdadeiros popstars. Alguns deles vão e pagam o pedágio necessário para não caírem em desgraça, mas deixaram de lado a submissão que caracteriza a adesão aos líderes de perfil autoritário.

É verdade que Bolsonaro continua sendo um líder influente. Mas é evidente que a vitória de Lula e as provas de que ele e sua guarda pretoriana conspiravam contra a soberania popular do voto estão fazendo com que ele perca capacidade de atrair setores para além daqueles fanatizados pelo ideário da ultradireita e pela cegueira imposta pelos mercadores da fé, que manipulam a palavra de Deus com a finalidade de amealhar poder político e acumular riqueza material.

Assim, a direita tende a ficar cada vez mais restrita aos setores menos sensíveis ao diálogo e prisioneira da liderança tóxica de Bolsonaro, que evitará a construção de qualquer transição concertada, processo no qual o comprometimento do líder é essencial. O caso mais emblemático disso foi realizado pelo então presidente Lula que, impossibilitado de concorrer numa terceira eleição consecutiva, em 2010, ungiu a sua sucessora e lhe colocou à disposição toda a sua autoridade e legitimidade, sem a qual não seria possível  alcançar  o  objetivo  de  dar  seguimento  ao  projeto  político.

As diferenças entre ambos são tão grandes que, enquanto Bolsonaro convoca um ato para implorar anistia e não consegue mais atrair os setores sociais que outrora ele foi capaz de galvanizar, Lula convocou o ato de repúdio ao 08 de janeiro e reuniu as principais autoridades políticas e do judiciário do país para construir as condições políticas necessárias para a restauração da democracia, do desenvolvimento econômico e social da nação e responsabilizar todos aqueles que se valeram do poder que lhes foi conferido pela democracia para roubá-la do povo brasileiro. É essa unidade do campo democrático que nos está permitindo avançar na punição dos golpistas, muito mais do que foi possível no pós-ditadura.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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