Dizer que Bolsonaro foi um omisso perfeito e acabado diante da pandemia que nos aflige é muito pouco. Além de não ter tomado sequer uma medida minimamente eficaz, ainda agiu de forma a estimular, pelo exemplo, a propagação da doença.

As atitudes e frases de Bolsonaro não devem ser entendidas apenas como expressões da ignorância, do despreparo ou da inapetência para o exercício do cargo que ocupa. Ele dá mostras de que entende o vírus como aliado seu na busca de eliminar o que considera excesso de habitantes.

Ainda como parlamentar, já deixava claro o que achava ser o maior problema do país. Não, não era a desigualdade social. Em pronunciamento na Câmara, tascou: “A causa da fome, da miséria e da violência é o crescimento populacional exagerado em nosso país”. E conclamava: “Quem não pode ter filhos, que não tenha”. Ou seja, o direito sagrado à maternidade e à paternidade, o direito, enfim, de ter filhos seria privativo de cidadãos como ele que, aliás, tem cinco.

No mesmo discurso, mostrava preocupação apenas com quem ocupa o mesmo patamar socioeconômico que ele. O povo não conta, só é lembrado como uma pedra a ser tirada do meio do caminho. “Não aconselho ninguém a ir à praia lá no meu querido Rio de Janeiro num sábado ou domingo de muito sol, porque não tem lugar mais pra se deitar. Ou se fica em pé ou se fica dentro d’água ou se fica no calçadão. Tem gente demais.”

Ao falar em “gente”, ele se refere apenas ao povão. Em relação à classe média e à elite, Bolsonaro quer, além dos privilégios de que já desfrutam, que até as praias sejam somente para elas. O então deputado prossegue: “Nós temos que colocar um ‘ponto final’ nisto se quisermos produzir felicidade em nosso país.” Mas felicidade pra quem? E como colocar um “ponto final”? Essa expressão lembra a “solução final”, que foi a decisão dos nazistas de eliminar todos os judeus que estavam nos campos de concentração.

No final do discurso, reforça o preconceito contra o povão, que não deve ficar, nas suas palavras, “apenas e cada vez mais colocando gente no mundo, que infelizmente, em sua grande maioria, não servirá para o futuro do nosso país”. Sempre de olho na próxima eleição presidencial, hoje ele procura se aproximar da base da pirâmide social por meio de programas como o do auxílio emergencial. Mas o verdadeiro Bolsonaro é o que se revela no discurso acima e também o que é o responsável por boa parcela dos mais de 100.000 mortos. Marca que ele, no íntimo, deve estar comemorando, já que resolve o problema, de ter “gente demais”.

Desde o início, o presidente fez pouco do perigo que representa a Covid-19, contrariando o que recomendavam seus próprios ministros da Saúde (hoje, ex), Mandetta e Teich, que são médicos, a OMS e a ciência. Brigou pela retomada das atividades econômicas no pico da doença, arvorou-se em garoto-propaganda da cloroquina, participou de aglomerações, abraçando correligionários, rejeitando o uso de máscaras e, em plena pandemia, deixando acéfalo o Ministério da Saúde. Botou no comando da pasta interinamente um general com tal intimidade com o setor que o país certamente ganharia se ficasse sem ministro.

As frases de Bolsonaro mostram um presidente que se lixava para a catástrofe. Quando o Brasil registrava poucos casos de infecção e de mortes, dizia: “No meu entender, está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”, “Não podemos entrar numa neurose”, “Esse vírus trouxe uma certa histeria”, “Não vai ser gripezinha que vai me derrubar, não, tá ok?”. Com o país registrando 22.169 casos e 1.223 mortes, declarou: “Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”.

Quando ficou claro que não era uma simples gripezinha, passou a ser ríspido e debochado nas respostas aos repórteres: “Eu não sou coveiro, tá?”, “E daí? Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres”, “O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque.” Mas fez pior que um moleque: enquanto o mundo inteiro homenageava a heroica atuação dos profissionais da saúde, Bolsonaro instigou populares a invadir hospitais e checar o trabalho. E finalmente o argumento mais patético de todos, que certamente jamais foi usado por um governante, diante de uma tragédia: “Todos nós vamos morrer um dia”.

Bolsonaro jamais visitou ou reconfortou sequer uma família dos mais de ‘100.000’ mortos pela Covid-19. Mas bastou morrer ‘1’ militar, que era da Brigada Paraquedista do Exército, para que ele prontamente se deslocasse até o Rio de Janeiro para participar do funeral.