Alguns dias atrás, Leonel Brizola, se vivo fosse, teria completado 99 anos. Artigos foram escritos, menos do que mereceria essa notável figura pública, mas talvez estejam guardados para o ano que será o centenário de seu nascimento, em 2022.
Como nasci em 1970, não acompanhei a “cadeia da legalidade”, a campanha pelas reformas de base, o exílio; era criança quando Brizola retornou ao Brasil e se elegeu governador do Rio de Janeiro, em 1982.
Já como universitário e simpatizante do Partidos dos Trabalhadores, vivenciei o decidido apoio a Lula no segundo turno da eleição presidencial de 1989 e, no ano seguinte, o debate se o PT do Rio de Janeiro deveria ou não apoiar Brizola como candidato a governador em 1990.
Nesses últimos anos, volta e meia lemos artigos lamentando os descaminhos do PT, saudosistas de um tempo em que o Partido não tinha se rendido ao pragmatismo, ao jogo político parlamentar, um tempo que ironicamente estou denominando de purista. Claro que há críticas consistentes, mas muitos artigos têm um fundo moralista e uma visão infantilizada, que ignoram o bruto jogo político e reduzem a questão à falta de vontade ou de firmeza de caráter dos dirigentes.
Contudo, nunca vi nada nada escrito sobre aquele que, olhando em retrospectiva, para mim foi o maior erro político cometido pelo PT em sua história, que foi o não apoio a Brizola na eleição para governador do Rio de Janeiro em 1990. E esse erro ocorreu ainda no período “purista” do PT e, talvez, até pelo sectarismo que esse suposto purismo induz.
Muitos militantes no Rio de Janeiro (boa parte hoje no PSOL) lembram de um outro erro importante, que foi o de forçar a aliança com Garotinho em 1998, mas quase ninguém fala do episódio que afastou o trabalhismo do PT e impediu precocemente a formação de uma frente política.
Não nego os aspectos negativos da traumática e forçada aliança com o PDT em 1998, mas isso significou agravar uma situação tentando não repetir um erro anterior e teve efeito mais regional, ao menos assim entendo, ao contrário da fatídica escolha de 1990.
O relativo e indevido esquecimento daquela decisão, quando o PT lançou Jorge Bittar como candidato a governador contra Brizola (contra a vontade do próprio Bittar, que defendia a aliança) tem raízes no mal relacionamento de décadas que setores da esquerda tiveram com o chamado “trabalhismo”.
A repressão à intentona comunista de 1935, a relação conflituosa e pra lá de ambígua de Getúlio com Prestes, a omissão do PTB em relação à cassação do registro do PCB, em 1947, geraram feridas profundas, que nem mesmo o apoio de Prestes (desde que voltou do exílio) a Brizola ajudou a curar.
Também não podemos esquecer o papel absolutamente crucial de São Paulo, onde o trabalhismo nunca teve relevância política. Está na memória política do País o momento em que Fernando Henrique Cardoso, já na presidência, afirmou que seu governo enterraria a “Era Vargas”. Nascido na esquerda, FHC expressou um pensamento que sempre rondou boa parte da intelectualidade paulista ou radicada em São Paulo, como ímã que aquele Estado se tornou.
Talvez um terapeuta identificasse a origem remota dessa afirmação não tanto em reflexões intelectuais, nem nos conflitos de Getúlio com os comunistas, mas na mágoa pela derrota da “revolução constitucionalista de1932”, que as crianças em São Paulo aprendem nas escolas a mitificar. Tem até feriado. Essa subjetividade construída a partir da idealização dos “Bandeirantes” e de um movimento político reacionário tem seus problemas, penso. Mas, divago.
O que me chamou a atenção foi que com tanta coisa ruim para ser enterrada, tanto atraso para ser superado, FHC escolheu justamente a “Era Vargas”, que deveria ser superada em nome de uma fluida e incerta modernidade, que, ao final, se mostrou uma farsa, era apenas o liberalismo econômico requentado.
Sem negar as contradições, a “Era Vargas”, bem ou mal, introduziu a esquerda política como ator com alguma relevância eleitoral no Brasil, colocou a pobreza e a injustiça social na agenda, resultou nas “reformas de base”, cujas propostas ainda são em grande parte atuais, passados quase 60 anos.
A “Era Vargas” nos deu uma concepção do Estado brasileiro que as diversas vertentes reformistas que se digladiavam na esquerda, especialmente no PT, não conseguiram politicamente superar. Não se trata de fazer juízo de valor acerca dessa concepção, comumente chamada de “desenvolvimentista”, mas de reconhecer que a esquerda descolada do trabalhismo não apresentou uma alternativa.
Em retrospectiva, lembremos do início do Governo Lula. O que o PT apresentou na área mais relevante para a macro política foram os insípidos e superficiais Palocci e Henrique Meirelles. Não, não cabe reclamar apenas da “Carta ao Povo Brasileiro”, foi uma demonstração de que o Partido não sabia o que fazer.
O PT mostrou ter sólidas políticas de inclusão, arrojada concepção para a política externa, mas, não sendo um partido revolucionário, demonstrou não saber o que fazer com esse brinquedinho complexo chamado Estado, como transitar para uma social-democracia.
Precisou a crise do “mensalão” colocar no leme, como gerente, Dilma Rousseff, cuja maturidade de militância política foi construída no PDT gaúcho. Com todas as limitações, voluntarismos, contradições, omissões, as políticas petistas com Dilma/Mantega foram essencialmente desenvolvimentistas, advindas do tão atacado quanto impreciso conceitualmente “trabalhismo”. Do além, Brizola deve ter gargalhado.
Aqui volto para 1990. O grave erro do PT foi permitir que esse impreciso (mas construtor de uma subjetividade social de esquerda) “trabalhismo” dele se distanciasse, separado por um fosso de mágoa. As vaias dirigidas a Lula no velório de Brizola mostraram que a coisa tinha descambado para a emoção, o afeto (ou falta de), que nunca são bons conselheiros políticos.
A história não é linear, mas nesse aspecto específico enxergo o PT como um passo adiante que as múltiplas esquerdas brasileiras antes dele deram, inclusive a esquerda abrigada no trabalhismo, que Brizola tão bem representou. Um partido que respondia à necessidade de a classe trabalhadora representar a si mesma, que estava preparado para a disputa política na democracia eleitoral de massas que nos tornamos.
O PT foi uma lufada de ar fresco na política brasileira, mas foi um “upgrade”, não uma invenção. As patentes já estavam registradas. O partido em si já era uma grande frente, um guarda-chuva que abrigou diversas correntes da esquerda brasileira, de revolucionários a sociais-democratas, mas cometeu o erro de se considerar, ao menos em seu período inicial, adversário da “Era Vargas”, do “trabalhismo”, do “brizolismo”, ao invés de enxergá-los como aliados nas lutas políticas contra as históricas injustiças sociais brasileiras.
O partido é constantemente acusado de hegemonismo. Considero a crítica, atualmente, um oportunismo político, mas tem sua razão histórica. Não foram poucas as vezes, por exemplo, em que o PT se aliou discursivamente à direita nos ataques a Brizola.
Também no PT chamavam Brizola de “caudilho”, “populista”, essas adjetivações pra lá de duvidosas construídas pela direita quando quer atacar alguma liderança popular. Vi militantes em plenárias do partido, no início dos anos 90, fazerem malabarismos retóricos para criticar os CIEPs ou para atacar a política de segurança pública de Brizola, cuja premissa deveria ser aceita por qualquer um que se denomine de esquerda.
No afã de se diferenciar do “trabalhismo” o PT cometeu erros políticos importantes e a não aliança com Brizola em 1990 foi emblemática e um marco político inegável.
Claro que é mais fácil falar olhando para trás, mas nem por isso menos necessário, especialmente porque o debate sobre união e frentes políticas se tornou premente. No Rio de Janeiro, a decisão de 1990 representou o alijamento da esquerda das disputas eleitorais no Estado e na Capital. O enfraquecimento do PDT ideológico, “trabalhista”, não fortaleceu a esquerda que rejeitou Brizola em 1990, pelo contrário, o vácuo foi ocupado pela direita, laica ou religiosa.
Sem ter bancada para governar, Brizola fez acordos na ALERJ com José Nader, precursor das práticas políticas que consagraram logo depois os notórios Jorge Picciani e Sergio Cabral. Sem o PT como aliado, o caminho de Garotinho para usurpar o trabalhismo ficou livre. Ironicamente, foi o herdeiro Frankenstein do brizolismo que desferiu o golpe que a esquerda não se recuperou até hoje no Rio de Janeiro.
E no plano nacional, a fatídica decisão de 1990 impediu a formação de uma verdadeira frente no momento histórico em que ela teria relevância política. Penso que não é leviandade especular em que medida ser abandonado por seu irmão mais novo e nacionalmente mais representativo, acelerou a fragmentação e dispersão do trabalhismo, um setor político importante que apenas residualmente foi absorvido pelo PT ou que ainda permanece no PDT.
Em 1998, quando veio a aliança, só serviu, paradoxalmente, para dividir ainda mais a esquerda, sendo a causa mais relevante para a posterior criação do PSOL.
Então, nesse momento que falamos de união das esquerdas, em frentes políticas, devemos nos lembrar de 1990 e, também, do homem público Leonel Brizola.
O PT no poder, reconheçamos, não apresentou nenhuma contradição importante em relação às demandas do trabalhismo personificado por Brizola. Podemos dizer que, ao contrário, na segurança pública foi muito mais conservador. Até a Globo, antes inimiga mortal do gaúcho, passou a mirar implacavelmente o PT e Lula. Ou seja, toda aquela batalha ideológica, todos aqueles discursos inflamados que ouvi para lançar candidatura própria em 1990 se mostraram inócuos, na prática.
Já a personalidade firme e magnética de Brizola, mesmo formada em outros tempos da política, parece crescer entre os simpatizantes da esquerda que têm idade para dele se lembrarem, ao menos nas redes sociais, certamente saudosos de políticos que sabiam o que representavam e o que defendiam, sem papas na língua e sem a censura de marqueteiros.
E do homem público Brizola se podia esperar exageros, verborragias, erros táticos, brigas desnecessárias, mas nunca falta de desprendimento ou de grandeza para engolir sapos e abraçar a melhor causa para o Brasil. Esses são alguns dos ensinamentos que Brizola deixou para as esquerdas e as siglas partidárias que a representam nesses tempos difíceis.
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Aproveite e clique para assistir o vídeo de Eduardo Bueno => Brizola: a gênese de um caudilho.