A sociedade pós-moderna é marcada pela desilusão humana com a Verdade. Hoje, independentemente do quanto você deteste essa situação, o que temos são narrativas – milhares delas. Perspectivas individuais ou coletivas que se associam, criando agregados explicativos do mundo. Volta e meia uma narrativa prevalece sobre as outras, às vezes por corresponder mais à realidade, às vezes por sua maior eficiência quanto a algo específico e às vezes somente por ser mais bem vendida. A luta constante entre progressistas e retrógrados (faço aqui uma distinção proposital entre retrógrado e conservador), em toda a sua pluralidade, é nada mais, nada menos, que um confronto de narrativas que requer de seus peões – nós – atenção constante a todos os movimentos e tendências. Qualquer desatenção, tal qual aconteceu nas manifestações de 2013, nossas vozes serão usadas contra nós mesmos.
Inserida nesse contexto, a crítica à prática de linchamentos virtuais e bloqueios a figuras públicas e empresas (chamada de “cultura do cancelamento”) ganhou força, recentemente, com a controversa derrubada de estátuas de figuras históricas durante o movimento Black Lives Matter. Mas essa crítica sempre existiu, de maneira difusa e tímida, como na defesa de homens acusados de assédio ou estupro, de autores consagrados, mas hoje entendidos como racistas, de homofóbicos, etc.
Neste breve comentário eu defendo que o crescente ataque à cultura do cancelamento tem como alvo, na verdade, as ações afirmativas de minorias, em especial a noção de lugar de fala. Mostro também que, no jogo de xadrez entre forças progressistas e retrógradas (evitando, propositalmente, o termo conservador), intelectuais têm sido usados, talvez até involuntariamente, como peões na legitimação de narrativas reacionárias, em geral, por serem incapazes de abrir mão de seu direito à palavra.
A já referida derrubada de monumentos e o recente linchamento virtual da antropóloga Lilia Schwarcz por, sendo branca, ter publicado artigo em que consta que a cantora negra Beyoncé precisaria “entender que a luta antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal” ilustram um pouco da diversidade dos cancelamentos. Em ambos os casos também aparece, de maneira bastante didática, a questão do lugar de fala. Afinal, quem poderia, mais apropriadamente, apontar as estátuas ofensivas ao povo negro; e de quem é o lugar de fala para determinar o que a Beyoncé deveria entender sobre seus próprios ancestrais?
Não é de hoje, também, que muitas vozes se levantam contra esses cancelamentos. Há uma proliferação de livros, artigos e entrevistas que apontam problemas em tais linchamentos virtuais (não somente ligados à causa negra). Entretanto, existe um visível descompasso entre o suposto alvo de ataque e o argumento desses textos. Ao passo que o alvo declarado é a “cultura de cancelamentos”, em boa parte dos referidos textos os argumentos buscam mostrar as deficiências lógicas não dos cancelamentos em si, mas da noção de lugar de fala, do politicamente correto e do chamado “exibicionismo moral”. Com argumentos contrários a essas noções, são exaltados princípios, a uma primeira vista, irrefutáveis como a liberdade de expressão e a valorização da diversidade de opinião, além de ser lembrada a importância da relativização histórica quando julgamos o virtuosismo moral de nossos antepassados.
Portanto, toda a argumentação refere-se mais às bases ideológicas que resultam nos cancelamentos que ao cancelamento em si, como ferramenta política. Uma evidência substantiva disso é que, caso o alvo fosse os cancelamentos, tais debates e reflexões incluiriam temas como a importância da presunção de inocência; o problema da proporcionalidade da punição via redes sociais; o perigo da disseminação de notícias falsas; etc. Essa desconexão entre alvo suposto e alvo real nos textos sugere que a imagem de linchamentos virtuais como movimentos brutais possa estar sendo usada na construção de narrativas contra noções já estabelecidas e úteis a causas tão caras à sociedade quanto o feminismo e o combate ao racismo. Nesse contexto, leitores e escritores são levados a encarar os cancelamentos como corolários imediatos de causas afirmativas, quando não o são.
Exemplifica bem esse processo o texto em defesa de Lilia Schwarcz da psicanalista, igualmente branca, Maria Rita Kehl que, apesar de mencionar, logo no começo de seu texto, que debateria a “cultura do cancelamento”, prendeu-se somente à questão do lugar de fala. Nele, após uma irrepreensível e quase poética declaração de amor à raça e à cultura negras, essa autora sintetizou perfeitamente seu sentimento e o argumento central da maioria dos intelectuais que estão atacando o lugar de fala. “Somos iguais. Não em experiência de vida, nem na cor da pele. Em direitos, em dignidade e, como tento fazer agora, em liberdade de expressão. Eu desrespeitaria os membros do Movimento Negro Unificado se fosse condescendente. Ou se eu fingisse concordar para não sofrer linchamentos virtuais… Por isso não aceito que, em função de nossas origens diferentes – e dos privilégios dos quais tenho consciência – os companheiros membros do MNU eventualmente exigissem que eu calasse a minha [palavra].”
Claro, há muita controvérsia histórica sobre o tema e não serei eu, de um lugar tão distante, a resolver a questão do lugar de fala. Em particular, a avaliação do caso Lilia Schwarcz eu deixo por conta de quem tem lugar de fala e já se pronunciou a respeito, como é o caso de Djamila Ribeiro e Wilson Gomes.
Entretanto, seguro de não cruzar o lugar de fala de ninguém, eu me reservo o direito de ter dúvidas sobre o discurso de outro branco a respeito da questão. Por mais bonita e comovente que seja a redação do texto da Dra. Kehl, é impossível não se perguntar se alegar que ama o movimento negro, que é irmã dos negros, que conhece tudo o que é samba e que, justamente por isso, não abre mão do direito de se expressar, não seria contraditório em algum nível. Prova superior de amor não seria, percebendo a importância do lugar de fala do outro, abrir mão de seu próprio direito à fala e mesmo à liberdade de expressão? Essa questão se aplicaria, especialmente, quando a sua fala estivesse sendo levantada em detrimento da fala de alguém legitimamente portador daquele lugar, o que foi o caso do texto que estava sendo defendido.
Cabe notar ainda que, inadvertidamente, a autora acabou descrevendo longamente seu curriculum vitae como argumento de seu direito de falar. Eu, como leigo no assunto, imagino que se começarmos a usar aqui novamente o argumento da autoridade como critério na escolha de quem tem lugar de fala, estaremos voltando dezenas de anos nessa discussão. Estaríamos, novamente, colocando em risco ou fragilizando a participação daqueles que, de fato, precisam ser ouvidos.
O que parece escapar à boa parte daqueles que criticam a noção de lugar de fala é que ele, assim como todas as demais ações afirmativas, como é o caso de cotas, não se define como uma ação racional, mas sim como ação reparatória e repleta de razoabilidade. A razoabilidade é, nesse sentido, justamente, a vertente da razão que se permite impregnar de história e humanidade. Sua ação como restauradora do espaço de minorias é inconteste, bastando para isso ver a quantidade de negros hoje em universidades públicas.
No que concerne aos cancelamentos como estratégia de ação, o assunto é bastante complexo. Eles podem constituir manifestações legítimas e democráticas ou podem ser criminosos, conforme o formato que assumam. Não entrarei nesse mérito aqui, cabendo apenas ressaltar que cancelamentos são usados na defesa de todo o tipo de causa (meio ambiente, gênero, ataques ao STF, à Natura, ao filme “Democracia em Vertigem“, à menina de 10 anos estuprada, ao McDonald’s, etc.). Logicamente, o fato de eles constituírem estratégia de persuasão controversa não torna, de forma alguma, a ideia defendida por seus integrantes ruim ou frágil.
Entretanto, estabelecida e ratificada a indevida associação entre linchamentos e ações afirmativas, passa a ocorrer uma sinergia devastadora que põe em descrédito o lugar de fala e o politicamente correto. Essa se dá entre dois dos mais usados estratagemas de Schopenhauer, o da “Ampliação Indevida” e o da “Falsa Proclamação de Vitória” (já que muitos desaprovam os tais cancelamentos). Proclamada a vitória sobre o cancelamento e, por consequência, sobre o politicamente correto, abre-se a porteira para qualquer tipo de argumento falacioso e reacionário se instalar, explicitamente ou sub-repticiamente.
Livros como o do americano Robert Boyers (The Tyranny of Virtue: Identity, The Academy, and the Hunt for Political Heresies), que estourou em vendas após a derrubada de estátuas ou o do filósofo e provocador brasileiro Luiz Felipe Pondé, (Guia politicamente incorreto da filosofia) exploram perfeitamente este nicho.
No caso do primeiro livro, por exemplo, o uso de expressões pejorativas como “tirania da virtude” e “virtue signaling” (esta última para aqueles que vivem policiando a virtude alheia como se fossem, eles mesmos, figuras exemplares) tem um apelo forte, mas nenhuma fundamentação prática ou teórica. Para começar, estamos a muitas léguas de ter uma sociedade ou governos virtuosos, muito pelo contrário. Isso faz com que toda a militância e toda a chatice sejam, de fato, ainda, extremamente necessárias. Em segundo lugar, sendo o conceito de tirania carregado de informações negativas, uma suposta tirania da virtude torna-se algo impossível do ponto de vista filosófico. Resta então acreditar que o que o autor chama de virtude, de fato, não o seria.
No mais, porque a virtude é exatamente o que as sociedades e os indivíduos buscam desde sempre, mesmo aqueles que criticam os “defensores da virtude” estão crendo serem virtuosos ao fazerem. Claramente, por outro lado, quando o autor que critica esses “displays” de virtude por virem de pessoas não virtuosas, ele nos deixa confusos. Ficamos sem saber se o ruim, segundo o autor é não ser virtuoso ou ser.
Essa proliferação de argumentos ruins que navegam no recalque reacionário de seus promotores e leitores encontra eco perfeito no elogio do politicamente incorreto do Pondé. O único objetivo de criticar o “politicamente correto” é insinuar a deficiência de suas partes pela ridicularização do todo. Mais um estratagema retórico de natureza falaciosa. Por mais interessante que esse título seja em termos de marketing o elogio do incorreto não faz dele correto.
Mas esse tumulto intelectual serve de substrato para todo o tipo de lixo discursivo. Surgem então os argumentos pseudorracionais como, por exemplo, aquele que diz que “toda decisão tomada com base em raça seja racista”; ou aqueles falsamente ideológicos, calcados na liberdade de expressão que é usada para sobrepujar o lugar de fala para quem nunca pode falar; ou os pseudocientíficos que se dizem, por exemplo, evolucionistas, ao explicar diferenças entre raças e gêneros sem estarem, de fato, respaldados em pesquisas científicas.
Mas isso pouco importa. Oportunistas sempre usaram noções enviesadas de ciência para justificar suas agendas pessoais. O que interessa nisso, para efeito deste texto, é entender o que faz com que sejam usados argumentos tão pobres contra o politicamente correto, cujas bases remontam a séculos de humanismo. Como não entender que reparação histórica não pode ser avaliada em termos de lógica formal aristotélica? Uma resposta simples seria, justamente, a “falsa proclamação de vitória” sobre os cancelamentos e, portanto, sobre tudo que se associe a eles.
Há muitas outras possíveis narrativas e alternativas àquela aqui apresentada. Talvez tudo seja muito mais simples. Talvez, ao invés de um movimento organizado, esse processo todo seja somente uma natural autocrítica de pensadores humanistas que, involuntariamente, será usada contra eles mesmos pelos próximos 20 anos. Talvez seja algo ainda muito mais simples, como o recalque do branco pela perda de seu pretendido púlpito perpétuo para o lugar de fala. Isso talvez seja o fator mais preponderante por trás da incrível incapacidade de intelectuais de ceder espaço de fala diante do óbvio dilema moral entre, de um lado, o direito à liberdade de expressão e, do outro, o direito à reparação histórica.
Todo indivíduo tem o direito de pensar, falar e se calar sobre o que quiser! Entretanto, está cada vez mais claro que devemos atentar muito cuidadosamente para o fluxo de narrativas que nos circunda. Intelectuais devem refletir bem, analisar quem perde e, realmente, quem se beneficia quando se estimulam discussões sobre temas sensíveis. Caso contrário, pareceremos, sempre, um bando de crianças brincando de cuspir para o alto.