O Capanema resiste

Ilustração: Mihai Cauli

Após forte reação popular, o Palácio Capanema, ícone da arquitetura modernista brasileira, é retirado da lista de mais de 2 mil imóveis que vão a leilão pelo governo federal.

São 2.263 imóveis, pertencentes ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), a serem oferecidos para compra, em próximo encontro do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do ministro do Trabalho e Previdência, Onix Lorenzoni, com incorporadoras e potenciais investidores do mercado imobiliário.

A fórmula anterior, que favorecia os que oferecessem maior ágio acima do valor mínimo fixado pelo governo, vinha frustrando as expectativas de arrecadação – apenas 100 milhões foram alcançados em 2020 e 80% dos leilões nem se realizaram, por falta de interessados. Mas mudanças na legislação – lei 14.011/2020, sancionada no ano passado e regulamentada este ano, foram feitas para facilitar a alienação desses imóveis. O próprio governo noticiou que, com isso, estaria viabilizando um potencial adicional de receita de R$ 1 trilhão de reais.

As novas regras, consolidadas na Proposta de Aquisição de Imóveis (PAI), permitem que o mercado acione a administração pública, providenciando o laudo de avaliação do imóvel de seu interesse. Qualquer pessoa física ou jurídica pode, agora, apresentar proposta para adquirir um imóvel da União.

A lógica financeira, no entanto, equalizou preço e valor, passando como um trator por cima das inúmeras camadas de significado cultural do Palácio Capanema, para o Rio de Janeiro e para o Brasil. E a indignação geral residiu, mais do que na proposta de venda, na própria arbitrariedade de se colocar no mesmo balaio imóveis subutilizados – designados “ativos econômicos” – e um bem cultural da importância do Capanema.

A beleza do paisagismo do Palácio Capanema
Fotografia: Oscar Liberal

Uma semana depois da notícia, que provocou muita reação contrária, o próprio ministro da Economia veio a público avisar que desistiria da venda.

Exemplar histórico da arquitetura modernista, o edifício, de 16 andares, ocupando um quarteirão inteiro no centro do Rio, foi pioneiro na adoção de fachada livre com cortina de vidro, planta livre e elevação sobre pilotis, integrando assim espaço interior, rua e paisagem. Pinturas, afrescos e painel de azulejos de Portinari, jardins suspensos de Burle Marx, esculturas de Bruno Giorgio, de Jacques Lipchitz, de Adriana Janacopulos, de Celso Antonio, pinturas de Guignard, e muitas outras obras, integram o conjunto. Também é inovador no uso de divisórias de madeira baixas e moduladas dividindo os ambientes, e no mobiliário moderno especialmente desenhado para o prédio.

Jardim do Palácio Capanema feito por Burle Marx

Jardim do Palácio Capanema projetado pelo paisagista Burle Marx. Fotografia: Oscar Liberal.

O projeto, concebido em 1936, foi elaborado por uma equipe de notáveis arquitetos, como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos e consultoria do renomado Le Corbusier. A obra se estendeu até 1945, dificultada pela situação de guerra que o mundo atravessava.

Além de tombado, em 1948, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o edifício está, desde 1996, na lista indicativa para ser incluído como Patrimônio Mundial pela UNESCO.

Reconhecido em 1943, pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, como o edifício mais avançado do mundo, o Capanema empregou as mais modernas soluções tecnológicas da época, adequadas ao clima tropical, como o brise-soleil móvel, janelas em fita, ventilação cruzada, luz natural e telhado verde (com jardins de Burle Marx).

Seu valor cultural, entretanto, não se resume à edificação, ao monumento em si, mas diz respeito também ao seu uso histórico e à sua dimensão simbólica.

Inicialmente, o prédio sediou o Ministério da Educação e Saúde do governo.

Azulejos de Portinari marcam a história da arquitetura singular do Palácio Capanema

O gigantesco painel de Cândido Portinari no Palácio Capanema.

Getúlio Vargas, tendo recebido o nome do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, pessoalmente empenhado na realização do projeto. Também abrigou setores do Iphan e da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Após a transferência da capital para Brasília, em 1965, e mais adiante, outras instituições federais foram trazidas, como a Fundação Nacional de Arte (Funarte), a Fundação Palmares, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o Centro Lúcio Costa – escola de patrimônio chancelada pela UNESCO. Além da guarda de acervos documentais de pesquisa e ensino, inúmeras atividades culturais eram ali desenvolvidas, registrando uma média de 42 mil visitantes ao ano.

A reforma iniciada em 2014 e prevista para terminar este ano, se alongou por problemas de verba e devido às novas salvaguardas exigidas pela Unesco, face a candidatura a patrimônio mundial. As instituições ali abrigadas só foram deslocadas em 2017, quando começaram as obras internas, após recuperação das fachadas e jardins históricos. Em instalações provisórias, sem o devido acesso do público, aguardam o retorno ao Capanema, para retomar suas atividades plenamente.

Seu valor simbólico foi atribuído pelo próprio Lucio Costa a uma dupla “carga expressiva”: de um lado, a qualidade da arquitetura, afirmando “o gênio nativo” e, de outro, a concepção associada à cultura da paz. No contexto de um mundo arrasado pela guerra, o arquiteto Walter Gropius se disse admirado de encontrar, apenas no Brasil e na Finlândia, uma arquitetura com essas características.

A inovadora arquitetura do Palácio Capanema

Uma construção feita pelos pioneiros da arquitetura moderna brasileira. Fotografia: Oscar Liberal

Era o período do Estado Novo e a coexistência de ideologias conservadoras e liberais, na sustentação da ditadura Vargas, resultou num fenômeno curioso, responsável pela diversidade de estilos na concepção arquitetônica de três prédios, construídos quase que simultaneamente na região central do Rio: o Ministério da Fazenda, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Educação e Saúde – Palácio Capanema. Ao contrário dos outros dois, que evocavam a arquitetura monumental cortejada pelos regimes autoritários da época, o Capanema materializou toda uma idealização de futuro, a utopia de um país moderno, que prometia romper com o passado colonialista.

Através de sua arquitetura, o Brasil se projetou no cenário internacional, demonstrando que se podia ser moderno nos trópicos. Sabemos hoje que essa ruptura nunca aconteceu de fato e que a desigualdade socioeconômica e o racismo sobrevivem entre nós. Mas o Capanema guarda uma história e uma memória, que não devem ser apagadas, podendo nos ajudar a superar os obstáculos. (Atualizado em 03.09.2021, original publicado no Clarin)

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