Grosso modo, podem-se focalizar os conceitos de maior audiência teórica e política em cada momento da sociedade a partir do que se destacou nas pesquisas acadêmicas financiadas pela CAPES e pelo CNPq, bem como nos discursos públicos dos atores conjunturais.

  • a) Entre os anos 1960-70, acham-se a desigualdade social no campo e na cidade, a questão da carestia, o crescimento das favelas, a repressão aos estudantes e trabalhadores, o arbítrio, as torturas e a crescente concentração de terras e de riqueza sob regimes políticos autoritários.
  • b) Entre os anos 1980-90, espocaram a governabilidade, o processo de redemocratização, a conversão de apoiadores das ditaduras militares aos ideais da sociabilidade democrática e a globalização radical dos mercados em curso sob o empuxe do Consenso de Washington.
  • c) Entre os anos 2000-10, irrompeu a ideia de um “outro mundo possível” que impulsionou governos progressistas no Brasil e na América Latina e a democratização da democracia via mecanismos de participação direta – com a temporária vitória da esperança sobre o medo.

Neste longo período, os movimentos sociais consolidaram direitos conquistados a duras penas pelo ambientalismo, as correntes do feminismo, os grupos LGBTQIA+ e antirracistas, cujas demandas ganharam espaço nas mentes e corações, e mesmo na legislação. Em paralelo, emergiram pautas conservadoras relativas às fronteiras por conta da imigração, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Nasceram golpes anticonstitucionais de novo tipo no continente latino-americano. Estabeleceu-se uma aliança entre a mídia dominada pelos banqueiros e o Poder Judiciário para aplicar o lawfare no ataque à reputação de lideranças populares (Paraguai, Equador, Bolívia, Brasil). A pororoca mudou para a política.

Em todos os casos, as ambições estadunidenses foram atendidas. “Os americanos, como sempre, agiam em nome de suas grandes empresas e de seus interesses”. Nessa luta do mar (recolonizador) com o rochedo (as classes subalternizadas do capitalismo periférico), o aríete utilizado para o trabalho sujo foi o “conluio da mídia elitista com a Lava Jato comandada por Moro e Dallagnol”, resume Jessé Souza, em Como o Racismo Criou o Brasil (Estação Brasil). Nunca se vira tal mobilização lesa-pátria com tamanho respaldo nas instituições da República. Por óbvio, isso não seria minimamente viável se as elites nativas se recusassem a deixar a metrópole espoliar o país. Ah, se gostassem do Trópico.

No livro Capitalismo em Debate: uma Conversa na Teoria Crítica (Boitempo), de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, publicado em inglês em 2018 e traduzido para o português em 2020, as autoras apontam um conceito cada vez mais presente nas reflexões que se desenvolvem dentro e fora dos muros universitários. Sim, o conceito de capitalismo – que décadas atrás desapareceu com o “fim da história” – está agora de volta. “A retomada do interesse pelo capitalismo é uma ótima notícia para o mundo em geral”, enfatiza Fraser, que enxerga no paradigma do capital “a ordem social institucionalizada”. Jaeggi o classifica de “uma forma de vida”. Ambas, reinserem o sistema analisado por Marx na grande maré da história.

A mundialização neoliberal havia retirado a discussão sobre as engrenagens vigentes das ondas que movem a arca da humanidade na época de maior arrogância e estupidez da dominação capitalista. Isto é, por ocasião da extinção (que não deixou saudade) da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que fundira o Partido Único ao Estado. Então, os terraplanistas travestidos de profetas do passado afirmavam que o mercado e a representação eram a pedra de Sísifo assentada no topo da montanha. Ledo engano. “Há quase um consenso de que o capitalismo é, mais uma vez, um problema e um objeto digno de atenção política e intelectual”. A terra se move e inquieta os dogmas mercadológicos.

Não obstante, outra temática ganha também urgência, quando parecia um princípio de ferro: a liberdade de expressão. A prisão do australiano Julian Assange, jornalista e ciberativista, fundador da organização transnacional sediada na Suécia, sem fins lucrativos, WikiLeaks, que repassa fotos e documentos vazados de Estados e empresas com inegável dimensão pública, envergonha a contemporaneidade. Escândalo magnificado pela decisão recente de uma Corte de Londres que aprovou a sua extradição para os Estados Unidos. Trata-se de um mártir da democracia em nosso tempo, amado para sempre pelos povos ao redor do planeta, incluindo a cidadania não-trumpista do Norte e não-bolsonarista do Sul. Defende com coragem e paixão republicana um valor inegociável, forjado em embates democratizantes. Coube a Lula exprimir a solidariedade trancada na garganta dos democratas. Gracias.

A WikiLeaks já publicizou um vídeo sobre o ataque de um helicóptero Apache que matou 12 civis em Bagdá, no contexto da guerra do Iraque, entre os quais jornalistas da Agência Reuters. Mais: divulgou cópia do manual de instrução militar dos EUA para tratamento dos prisioneiros em Guantánamo (que fica em Cuba!). Mais ainda: documentos do Exército dos EUA que reportam a morte de milhares de civis na guerra do Afeganistão. Os dois hemisférios reprovaram as ações que deram visibilidade ao flagrante terrorismo de Estado, exceto a opinião imperialista que condenou a divulgação sob o pretexto da liberdade (cinismo não paga imposto). Têm razão os que creem existir contradição estrutural entre o capitalismo e a democracia, a ganância de lucro a todo custo social e ambiental e a livre informação.

A Voltaire, o patrono par excellence da liberdade de expressão no mundo, se atribui a frase: “Não concordo com uma palavra do que dizeis, mas defenderei até à morte o direito de dizê-las”. O famoso iluminista francês ficaria a favor ou contra o direito de expressão representado nos esforços Assange? E a imprensa brasileira, por que cala diante da vingança que o Estado imperial pretende contra aqueles que se batem (com justiça) pela liberdade?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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