
Eu te amava. Acho que sempre amei. Mesmo naquele tempo em que você era sonho. Desejo sussurrado em esquinas escuras, becos e encontros discretos. Amei desde que te vi de longe. E tive inveja dos que pareciam fazer de tudo por você.
Lembro como se fosse hoje. Você chegou com festa. Parecia que daquele dia em diante, todo dia seria carnaval. Andamos juntos pela avenida da vida. Com dificuldades, imprevistos e gente gritando para não perdermos o ritmo. Para não atravessar nosso samba. Desfilamos, mas sem apoteose.
Não sei bem quando as coisas começaram a ficar mal entre nós. Acho que foi comigo. Mudei com o tempo. Antes, eu era um só. Falava como um só. E falavam de mim como um só. Passei a ser dois. E outros mais.
Talvez, tenha começado quando parte de mim queria solidariedade e justiça. Outra, queria prosperidade e segurança. A razão me dizia que só haveria prosperidade e segurança com solidariedade e justiça. Mas sabemos que razão não é o que me move. Fiz besteiras apaixonadas. Acabei adoecendo. Te culpando. Te maltratando. Logo a você, a quem eu devo tanto!
Ah, Democracia! Quanto tempo passei sem nem ao menos lembrar do teu nome? Agora, falo de você o tempo todo, porque te vejo indo embora. Sei o que está pensando. Que Povo é “tudo igual”. Que só lhe dá valor quando te perde. Tudo bem, é verdade. Reconheço.
Sabe, eu me olho no espelho e não me enxergo mais. Vejo lados. Vejo opostos. Vejo conflitos. Queria que você me unisse. Fizesse de mim um só, mas não é você que faz isso comigo. Ao contrário. O que eu faço por ti que me une. É meu amor por ti que me faz Povo. Sem amá-la, sou bando. Sou conflito. Sou morte de fome, sede e raiva. Raiva de mim mesmo. Do que sou. Do que não quero em mim.
Na minha doença passional, parte de mim quer deixar de viver em conflito eliminando a outra parte de mim. Quer livrar-se de ideias e pessoas que outras ideias e pessoas não toleram. Mas isto não é te amar. É te ferir. É vaidade torpe. Narcisismo de minhas ideias tolas.
Imaturo, não entendia suas contradições. Suas leis como condição da liberdade. Igualdade para se ter justiça. Seu apreço pelos meios e instituições, que me pareciam protelação dos fins. Má vontade.
Hoje, sei que é seu jeito de me dizer que nada se faz a qualquer preço. E que quando em você vale tudo, ninguém em mim vale nada. Sim, hoje eu vejo. Talvez tarde demais. Talvez não.
Perdão pela corrupção das tuas instituições. Perdão pelas ideias perversas que deixei tomarem conta de mim. Perdão por ter feito de ti palavra vazia. Perdão por não te amar. Por não te deixar me proteger dos meus abusos.
Quero te amar de novo, Democracia. Não quero te perder nos porões e nas covas rasas. Não quero o medo e a tristeza que sua falta me traz. Ajuda-me a não te perder. Ajuda-me a não me perder.
Com desejo de amar o amor por ti, Teu Povo.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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