Desde que foi lançada a série Cem Anos de Solidão, trazendo para a tela o laureado livro de Gabriel Garcia Marques, em várias rodas de amigos surge o debate se é melhor o livro ou o filme, se será melhor para quem leu o livro ou não. Creio que essa polêmica é desnecessária – trata-se de duas diferentes linguagens, literatura e cinema, sobre a mesma fantástica criação de “Gabo”. De todo modo, não sendo mais do que um leitor contumaz e consumidor de séries de qualidade, o debate permite alinhavar uma pequena síntese de alguns pontos muito interessantes e bem trabalhados nos episódios.

De fato, lemos o livro no final da década de 1960. O mundo era outro, especialmente na América Latina vivia-se uma ebulição de revoluções, golpes militares ou golpes nas chamadas “repúblicas das bananas”[1], que nos levavam a uma busca de conhecimento sobre os países. Garcia Marques criou uma linguagem própria que logo foi apropriada por outros escritores latino-americanos (e alguns africanos), justamente pela característica de o realismo fantástico (alguns chamam de realismo mágico) permitir descrever com cores exacerbadas fatos políticos ou fatos corriqueiros que também poderiam ser classificados de surrealistas ou pouco críveis, merecendo leituras críticas caricatas. Na época em que vivíamos quando o livro foi lançado, a revolução cubana era recente; na Bolívia havia um golpe de estado e troca de presidentes (militares ou não) a cada ano, no Brasil havíamos tido o golpe militar de 1964, ainda sem o AI-5 (é provável que o livro fosse censurado se fosse lançado após 1968) e o realismo fantástico permitia lidar ou classificar fatos e eventos, leis absurdas e regras que, em tese, seriam inclassificáveis…

Enquanto escrevo este texto, não me sai da cabeça a música de Chico Buarque:

Boi Voador Não Pode

Quem foi, quem foi,
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for
O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa
É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar

Reparem que a música é parte da peça Calabar, do Chico e Ruy Guerra, de 1973, portanto uma imagem surreal (ou fantástica) para escrachar com os mandatários de plantão.

Voltando ao nosso objeto, tenho que admitir que, da memória que guardava do livro, justamente pela minha idade e talvez pela falta de vivência à época, destacavam-se o clima de Macondo, quente e úmido, característico de partes da Colômbia, e a saga dos Buendía, com forte destaque para a sucessão de paixões, sexo e, portanto, descendentes. Na série, na medida em que me dei conta do forte caráter crítico e político que a saga dos Buendía acabava por propor, tornaram-se menos relevantes para mim os diversos personagens que se sucedem nas várias gerações, apesar de entender que são justamente eles que amarram toda a história e que tornam o enredo envolvente,

Um grupo de jovens, liderados por um visionário que atravessa o altiplano para criar um novo povoado (seria à beira-mar, mas como não chegaram lá, sentam acampamento em área de charco cercada por águas correntes). Macondo cria-se como uma vila SEM uma estrutura de poder, polícia ou igreja, na verdade um experimento anarquista, na expressão da palavra e da ideia, mesmo que essa não fosse uma proposição formalizada ou assumida politicamente. Apenas foi a dinâmica e a forma de relacionamento no âmbito desse grupo, que vão se explicitando na implementação do povoado e de suas atividades. Como líder carismático, José Arcadio Buendía é um visionário ou sonhador, mas que está aberto ao conhecimento científico disponível no período, trazido como única representação externa, pelo grupo de ciganos e seu pensador, podendo esse fato ser representado pelo astrolábio, e os estudos que Arcadio aprofunda para se localizar territorialmente.

O povoado cresce e se consolida de forma autossuficiente e dissociado do mundo exterior, sendo que uma primeira senda de conexão se abre quando um dos personagens rompe com a família e sai daqueles limites, a mãe seguindo-o para trazê-lo de volta. Ali fica marcada a estrada de acesso, a sensação de que o povoado não poderá seguir totalmente isolado.

E, de fato, nessa linha, sucedem-se as tentativas de chegada de representações do Estado central e da Igreja. Em ambos os casos, trata-se do choque cultural de imposição de padrões de ordem (a cor das casas) e da submissão à religião, com a benção do padre para casórios, batizados e com a construção de uma igreja (até então inexistente, algo impensável em qualquer povoado da América espanhola). A resistência a essas imposições externas, explicitadas pelos Buendía e seus amigos, vão sendo minadas por fatos que, associados ao afastamento do líder em seus delírios oníricos, acabam por absorver a presença dos representantes do governo e da Igreja, tirando Macondo de seu isolamento e de sua experiência anarquista. Uma leitura psicanalítica[2] sublinha a imagem do protagonista preso à árvore e a apreende como a representação da impossibilidade “anarquista”, em formato de realismo fantástico.

Pelo lado espacial/territorial, a cidade cenográfica é muito bem construída, a cada fase explicitando o crescimento e o adensamento da vila, a multiplicação das atividades econômicas e também o surgimento das construções em maior escala – representando exatamente o Estado e a Igreja. Não podemos nos esquecer que TODAS as cidades espanholas nasceram a partir de uma praça central, onde de um lado ficava o palácio do governo e do outro a igreja ou catedral. Em Macondo, foi diferente, a vila cresceu sem essas imposições e só depois estas foram incorporadas ao tecido urbano.

Também vale observar os aspectos arquitetônicos da casa principal, dos Buendía. A casa vai crescendo ao longo do tempo, sempre no entorno de um pátio central (padrão espanhol), árvore e horta ao centro, com alas das salas, quartos dos rapazes, quartos das moças, a circulação sendo feita por grandes varandas no entorno, todos os cômodos com amplas janelas e portas de ambos os lados (voltados para a varanda e para a área externa), de maneira a garantir a ventilação cruzada, e o melhor conforto térmico em uma região sabidamente muito quente e úmida. Essa casa é importante protagonista da série, e nos transmite bem as sensações de liberdade e sufocos, pressões e conflitos.

A única referência que pode nos dar uma pista da época em que se passa a história é a chegada da pianola, um instrumento quase alienígena, que nos faz localizar em algum período por volta do final do século XIX. Mas essa localização temporal exata também não é relevante, pois o realismo fantástico permitiria todo tipo de colagens de imagens e tecnologias atemporalmente – veja-se o astrolábio trazido por Melchíades, como grande descoberta, quando na verdade é conhecido desde os gregos…

É muito presente o papel e a força das mulheres, especialmente da protagonista Úrsula Buendía, nas tomadas de decisão, arranjos, negociações e acordos em todos os níveis (dos casamentos aos partos e adoções, ao aceite ou não dos novos padrões de relacionamento com Igreja e Estado), ignorando ou enquadrando as figuras masculinas. Porém, a partir de certo ponto, sua força e liderança não são suficientes para enfrentar os conflitos políticos que escalam nas lutas pelo poder, tanto no nível governamental, quanto nos níveis de liderança individual, disputas e invejas, mesmo dentro de sua família.

A chegada definitiva do Estado a Macondo se manifesta pela presença de um representante nomeado do governo central e do partido Conservador, com meta de garantir esse domínio e evitar sublevações. O efeito é o oposto, e as bandeiras do partido Liberal encontram maior eco entre os homens do povoado. Daí por diante, o roteiro é explosivo e repete o script que conhecemos tão bem em toda a América Latina, que até há pouco moldou o padrão da história política colombiana e se reproduz até mesmo por aqui, em outras roupagens e escalas, com nomes semelhantes ou diferentes.

A eleição é fraudada pelos conservadores, mantendo o domínio do governo nacional. Para dar uma aparência de democracia, os liberais são convidados a participar do governo, assumindo algumas cadeiras no parlamento. Essa proposta é rejeitada; esses grupos estruturam-se como bandos armados e passam a enfrentar o exército nacional. A carnificina, antes exclusiva do exército, passa a se reproduzir pelas mãos e armas dos liberais – os ideais de liberdade se perdem nas disputas e ódios de novos líderes ou chefes de bando.

Em Macondo, a chegada de um novo representante do governo central, aparentemente mais esclarecido e que busca na figura de Úrsula informações e orientação para uma forma mais adequada de conduzir sua gestão, permite um breve retorno aos ideais originais, de liberdade individual, de esforço coletivo e menor presença do Estado. Este interregno, porém, dura pouco e logo a guerra sangrenta entre conservadores e liberais atingirá o povoado (agora já uma cidade) e a própria estrutura familiar.

Confirma-se, ao final, a percepção apontada no começo: a imagem do protagonista preso à árvore como a representação da impossibilidade “anarquista”, em formato de realismo fantástico. E estas são exatamente as falas finais de Úrsula para o marido, ao desamarrá-lo de sua árvore: “tudo o que fizemos não serviu para nada, e criamos monstros.”

Entendo que Garcia Marques, com o realismo “aparentemente” fantástico, está se referenciando à história real colombiana com lutas sangrentas, incluindo a chamada Guerra dos Mil Dias, que culmina com a perda do território do Panamá para os Estados Unidos de Theodore Roosevelt implantarem o canal, mantendo o domínio daquele território; e o Massacre das Bananeiras, antes citado. Porém, além disso, já está apontando para o perfil dos guerrilheiros e guerrilhas que, por anos, lutaram contra o governo central da Colômbia, e a partir de certo momento foram capturados pela estrutura do tráfico de drogas. A recente história política colombiana parece finalmente apontar para um Estado democrático, com menos conflitos regionais, e seguindo com uma literatura poderosa.

[1] Conforme aponta Felipe Gugelmin Valente, no site TECMUNDO  https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/600220-cem-anos-de-solidao-e-inspirado-em-historia-real-conheca-o-massacre-das-bananeiras.htm , a influência da United Fruit Company na política latino-americana é sentida até hoje, e inclusive colaborou para a criação do termo “República das Bananas”. Usando seu grande poder financeiro e político, a empresa ficou famosa por colaborar com governantes corruptos e ditaduras, pedindo em troca a concessão de terras que a permitissem continuar exercendo suas práticas comerciais.
[2] Colaboração de Leda Rebello
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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