O ano de 2020 começou com uma expectativa de reversão no domínio político e eleitoral do bloco conservador no Brasil. Pelo resultado colhido da nona eleição municipal realizada desde a Nova República, o ano termina com a maioria política e eleitoral constituída desde o golpe de 2016 praticamente intacta.

O que de importante teria acontecido para justificar a inversão do resultado eleitoral originalmente esperado? É o que se procura analisar a seguir, em três atos.

Prólogo

– Diagnóstico preciso do bloco conservador a respeito do medíocre desempenho do governo Bolsonaro ainda em 2019 e que, por isso, exigiria o seu próprio reposicionamento. Apesar da entrega da deforma previdenciária, exigência da base econômica rentista, a confusão ministerial e na base parlamentar era geral.

– Desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) em 2019, com variação de 1,1%, foi 40% inferior ao verificado no último ano do governo Temer (1,8%, em 2018). E, para piorar, o primeiro trimestre de 2020 registrou variação negativa do PIB (-1,5%), indicando que algo pior estava em curso na economia nacional ainda antes do início da crise sanitária.

Primeiro ato

Com a chegada da pandemia, Bolsonaro desfez o seu voo solo e buscou uma nova política para construir um “segundo” governo e assim chegar ao fim do mandato, em 2022. O realinhamento do governo foi o principal movimento do primeiro ato, que deve ser analisado em três dimensões articuladas entre si.
Inicialmente, a recomposição de força no interior do bloco conservador, com o distanciamento dos partidos neoliberais (DEM, PSDB) e de extrema direita (PSL), para se entregar aos mais de 250 deputados distribuídos nos 10 partidos que formam o Centrão no legislativo. Dessa forma, conseguiu se safar do risco da aprovação de algum impeachment da série enorme que bate à porta do Congresso Nacional.

Como segunda dimensão, a mudança na base social de apoio do governo Bolsonaro. Para isso, procurou deslocar-se do lavajatismo em direção ao segmento social dos ainda mais empobrecidos pela pandemia da Covid-19. Realizou a reforma ministerial que retirou pedras do sapato do governo (Moro, Mandetta e Weintraub) e interpenetrou ampla política de garantias temporárias de rendimentos na base da pirâmide social brasileira.

A terceira dimensão foi um cavalo de pau na condução da economia brasileira, afastando-se do cálice neoliberal da austeridade fiscal e da contração monetária de tanto agrado da financeirização rentista. Promoveu a desvalorização cambial para ajudar as exportações do agronegócio diante da retração do comércio externo, derrubou a taxa de juros para comprometer menos recursos com o pagamento dos juros da dívida pública interna que cresceu aceleradamente e provocou o maior deficit público da história da República.

Estas medidas evitaram que a queda do PIB fosse duas vezes maior em 2020 e amenizou os efeitos sociais, com a redução provisória da taxa de pobreza e da desigualdade de renda do trabalho.

Segundo ato

Conduzido pelo trabalho do Centrão nas decisões do poder legislativo, que ampliou e validou criativamente a constituição de um segundo orçamento federal. Com recursos públicos adicionais equivalentes a 8% do PIB, o governo Bolsonaro surfou em dois orçamentos federais: o neoliberal tradicional ampliado pelo golpe de 2016 (Emenda Constitucional 95 de congelamento dos gastos públicos, menos os financeiros) e o extraordinário para “enfrentar” a pandemia da Covid-19. Na realidade, a ampliação para valer do gasto público seguiu em grande proporção o roteiro político para ganhar as eleições municipais de 2020, o que ocorreu por duas vias.

A primeira foi assegurada pela preservação da massa de rendimentos dos trabalhadores, através da política de complementação de rendimentos (Bolsa Família, Auxílio Emergencial e Seguro-Desemprego, para evitar o rompimento contratual em massa dos empregados formais). Cerca de 2/5 da população brasileira ou o equivalente a quase 67% dos eleitores receberam alguma forma de ajuda monetária temporária proveniente do governo federal. Isso sem contabilizar as iniciativas dos governos estaduais e municipais.

A segunda via foi a significativa injeção de recursos federais nos governos municipais. A camada dirigente que ascendeu à condição de prefeitos e vereadores eleitos durante o golpe de 2016 corria o sério risco de ser reduzida eleitoralmente, caso os governos locais não tivessem recursos públicos para enfrentar o segundo semestre de escassez franciscana.

O fato é que as administrações municipais gastaram no segundo semestre de 2020 mais do que tinham realizado no segundo semestre de 2019 por conta dos repasses de recursos adicionais do governo federal. Tudo isso diante da grave crise econômica, quando os governos locais operaram com força e obtiveram, em consequência, a maior taxa de reeleição dos prefeitos desde as eleições municipais de 2008.

Terceiro ato

Caracterizado pela formação de frente partidária representativa do bloco conservador. Sem fragmentação, sempre que possível, os partidos do Centrão operaram em convergência eleitoral em 2020, o que permitiu obter um conjunto de vitórias em mais de 2,4 mil municípios do país.

Assim, a partir de janeiro de 2021, o Centrão passará a comandar 45% de todos os municípios do país – somando quase 75 milhões de habitantes (35% da população brasileira). Ainda que as eleições municipais tenham fraca conexão com o pleito presidencial, elas representam certo passaporte para a formação do voto ao poder legislativo, tendo em vista o engajamento de prefeitos e vereadores nas campanhas de deputados estaduais e federais.

Além do mais, a ferramenta das emendas orçamentárias impositivas termina por deslocar o papel do legislativo para o de gestor de parcela crescente dos recursos públicos. Prevalece, assim, a retroalimentação do conjunto das emendas de deputados federais e estaduais interligadas às demandas locais (prefeitos, vereadores, cabos eleitorais e outros), conformando uma espécie de distritos territoriais que retribuem pelo voto o novo formato do coronelismo eleitoral.

Quando articulados com o crime organizado e igrejas, o voto de cabresto aumenta, desfigurando significativamente a jovem democracia representativa brasileira. Não é por outro motivo que, no atual Congresso Nacional, a condução parlamentar majoritária tem sido exercida pelas bancadas dos três “B” (Boi, Bala e Bíblia).

A vitória arquitetada pelo bloco conservador parece dizer pouco a respeito da próxima escolha do presidente da República. Mas permite antecipar o perfil do poder legislativo a ser gestado nas eleições de 2022. Porém, é claro, tudo depende de como será a forma de gestão da crise capitalista nos dois próximos anos em meio à acelerada decadência nacional.