
Sufocado, sem saber bem do quê ou porquê, Carlos desligou a TV. Sabia que não queria mais ver ou ouvir o que ela mostrava. Sobrou o silêncio e o seu rosto refletido na tela escura. Encarou-se, tentando inutilmente não pensar em nada.
Há um dentro e um fora de nós. Dentro, sensações, sentimentos pensamentos. Fora, imagens e barulhos que só ganham harmonia quando trazidos para dentro. Em sua brutalidade material, o mundo é como é. Sem sentido, significado ou propósito. Todas estas qualidades são coisas de dentro. Acontecem quando as imagens e barulhos nos entram pelos sentidos e provocam um espírito atento.
Por isso a flor é uma beleza para alguns, risco de abelha para outros. Para outros mais, só uma flor mesmo. Carlos chorava emotivo de uma tristeza que talvez já estivesse lá antes de ligar a TV. Talvez não. Mas se lá já estivesse, o que a teria causado? Quem sabe, outras imagens e sons já esquecidos. Ou, talvez, a tristeza é que fosse a memória das imagens e sons dos quais já não se lembrava.
Parecia bem antes. Relaxava em casa depois de um dia de trabalho normal e calor descomunal. Abriu uma cerveja bem gelada para esfriar e relaxar. Depois outra. Comeu algumas sobras do almoço do dia anterior. Milagrosamente, ainda comíveis. Ligou a TV.
Buscou notícias. Sujeito de terno, meio gordo e desajeitado, noticiava crimes banais e bárbaros com a mesma gritaria. Algumas vezes, rebolava ao som de uma sanfona. Noutras, descrevia assassinatos com cara de bravo. Com câmera em close, repórter perturbava com perguntas desnecessárias a tristeza de uma mulher chorosa pelo filho morto. Mudou de canal.
Moça bonita com cara assustada. Ao vivo. No desconcertante ambiente da Câmara dos Deputados. No estúdio, gente bem vestida conversava e analisava com a calma de quem parece saber o que fala, mesmo quando não fala coisa com coisa.
Falavam de política, que deveria ter a ver com projeto, futuro e coletividade. Mas o assunto eram os interesses de quem está lá. Enquanto estiverem lá. Para permanecerem lá. E de gente de fora de lá, que ganha muito enquanto os que estão lá continuarem fazendo o que fazem lá. Talvez ainda haja política em algum lugar, pensou. Mas não lá.
Precisou de mais uma cerveja, para compensar o nojo e a raiva que os jornais lhe trouxeram para dentro.
Buscou entretenimento. Reality show. Mais ou menos ao vivo. Gente confinada em uma casa, mais ou menos como bichos em zoológico. Em jaula mais ou menos aconchegante. Como a dos bichos de zoológico, mas com o desaconchego dos muros em volta. Outra péssima ideia.
Gente ensimesmada e paspalha com suas estroinices, gritinhos e dancinhas. Esforço anormal para chamar a atenção. Competição desumana da qual só humanos são capazes. Moralismo de quem esconde os próprios defeitos tratando com crueldade os mesmos defeitos nos outros. Bastou.
Encarando-se na tela escura, deu-se conta de que, ligada, a TV mostra como somos por dentro. Desligada, vemos como somos por fora. Procurou outra cerveja, na frágil esperança de que a garrafa lhe trouxesse a paz que é incapaz de encontrar nas telas.
***
Leia aqui outros artigos de Julio Pompeu publicados no Terapia Política.






