Rua Nova dos Mercadores, aut. desc., século XVI.

Rua Nova dos Mercadores, aut. desc., século XVI.

A Pandemia

A situação em Portugal aproxima-se rapidamente da catástrofe. O país é hoje, em todo o mundo, o que apresenta o maior número de novos casos diários de Covid-19 por habitante, bem à frente do Reino Unido e dos EUA e encontra-se também em primeiro lugar no número de mortos diários por habitante.

Essa nova vaga da epidemia parece ter sido estimulada pelas festas de fim de ano quando, ao menos no Natal e apesar de algumas críticas, foram abrandadas as regras relativas a viagens entre concelhos (municípios) de modo a permitir as reuniões familiares.

Muitos emigrantes, inclusive do Reino Unido, vieram a Portugal para as confraternizações natalinas e possivelmente trouxeram na bagagem a estirpe britânica do vírus. Suporta essa hipótese a atual dispersão pelos diversos concelhos do país de incidências graves ou muito graves (casos per capita) da doença que, antes do Natal, restringia-se a um número bem menor de regiões, nomeadamente as de maior concentração populacional.

Outros fatores também contribuíram: a falsa sensação de segurança face às notícias do início do plano de vacinação e a ambígua e vacilante comunicação do governo relativa à gravidade da situação.

O número de mortos atingiu no dia 28 de janeiro um total diário superior a 300 (um novo máximo) e o número de novos casos passou a superar os 16.000. Na mesma data, a Assembleia da República (AR) aprovou a renovação do Estado de Emergência por 15 dias pela décima vez e o governo impôs um confinamento geral, à semelhança do que vigorou em março/abril.

Na vigência anterior do Estado de Emergência, manteve-se o funcionamento das escolas em todos os níveis e permitia-se a realização de cerimônias religiosas. Por pressão da sociedade civil, em especial dos dirigentes das associações de profissionais da saúde, que insistiam num confinamento mais apertado, as escolas foram afinal encerradas em todos os níveis.

É notável que o número total de novos casos na faixa etária abaixo dos 19 anos supera o mesmo número nas demais faixas etárias, com 10 anos de largura, o que parece contrariar a alegação do Ministério da Saúde de que as escolas não seriam disseminadoras de contágios. Aparentemente, o adiamento dessa medida se deveu a um atraso do governo no prometido investimento em recursos computacionais para os alunos menos favorecidos, prejudicados pelo ensino a distância que vigorou na primeira onda. O ensino a distância será retomado no dia 5 de fevereiro.

Com as novas medidas restritivas, a Polícia de Segurança Pública (PSP) foi orientada a abandonar a abordagem educativa anterior e adotar uma coercitiva com a aplicação mais amiúde de multas.

A situação dos hospitais continua crítica, beirando o colapso, apesar do aumento do número de leitos desde março. Um limitante marcante da capacidade de atendimento não é a falta de leitos, que poderia ser compensada com hospitais de campanha, mas a falta de pessoal, em especial de médicos e enfermeiros intensivistas. Desde março passado, cerca de mil enfermeiros portugueses emigraram em busca de melhores condições de trabalho.

O número de pacientes em tratamento intensivo no país ultrapassa a cifra de 700. Há falta de recursos de tratamentos continuados que permitiriam a liberação de leitos em enfermarias. Causaram impacto as imagens das filas de ambulâncias de atendimento urgente que se acumularam por horas à entrada de alguns hospitais, chegando a mais de 40 ambulâncias.

A situação crítica dos hospitais atinge inclusive alguns hospitais privados e de serviços sociais sem fins lucrativos. Há pressão de partidos à esquerda para que o governo recorra à requisição civil de unidades de saúde privadas, o que, pelo que entendo, as obrigaria a prestar serviços ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), remunerados por valores abaixo dos que usualmente praticam. Há uma semana, a Ministra da Saúde reconheceu que o governo poderá lançar mão da requisição civil de hospitais privados caso não se chegue a um acordo nos encontros com seus responsáveis.

A Ministra alertou também, acentuando a gravidade da crise sanitária, que a chamada variante britânica do vírus tinha presença já em 13% dos novos casos de infecção e poderia atingir 16% até o fim do mês. No entanto, a prevalência desta estirpe já ultrapassa hoje os 50% em Lisboa e adjacências. A estirpe da África do Sul também foi, ainda que em pequeno número, identificada em Portugal enquanto que a do Brasil ainda não foi detectada.

O plano de vacinação ainda não sofreu descontinuidades por ora, em consequência dos atrasos anunciados pela Pfizer e Moderna nas entregas programadas de doses das vacinas. No entanto, a depender da extensão do atraso, as já iniciadas aplicações das segundas doses aos profissionais de saúde e das primeiras aos idosos e cuidadores de lares podem vir a sofrer descontinuidade.

O plano inicial de incluir na primeira fase de vacinação apenas profissionais de saúde, as forças de segurança, os idosos e profissionais de lares e os maiores de 50 anos com comorbidades foi alargado de modo a cobrir os maiores de 80 anos que não vivem em lares e alguns titulares dos órgãos de soberania. Este último grupo incluiria o Primeiro-Ministro, parte de seu ministério, parte dos deputados e funcionários da AR, e presidentes de câmaras (prefeitos). No entanto, já se tem notícia de que funcionários do governo não incluídos nesta lista teriam sido vacinados indevidamente, o que tem provocado indignações públicas.

Num debate na TV entre jornalistas de diferentes órgãos (muito mais comuns aqui), um deles aventou veladamente a hipótese dos atrasos das farmacêuticas serem consequência das mudanças dos planos de vacinação nos EUA com a nova administração de Biden. De todo modo, a União Europeia iniciou uma queda de braço com as farmacêuticas produtoras de vacinas aprovadas que justificaram os atrasos nas entregas de vacinas à UE pela reorganização de sua produção. Entretanto, um recente estudo mostra que a UE, além de regatear o preço das vacinas, teria investido nas farmacêuticas um valor per capita menor que os EUA e o Reino Unido. A ONU mostrou preocupação com a disposição da UE de proibir que a produção da AstraZeneca em território europeu fosse exportada enquanto houvesse atrasos no fornecimento para a Europa.

E num quadro calamitoso desses, onde o governo vê-se entre as cruzes da pandemia e a caldeirinha da ruptura econômica, quando as festas e os aglomerados de pessoas estão proibidos, os portugueses são exortados a participar da grande “festa da democracia”.

As Eleições

Apesar do quadro sanitário dramático, o país foi às eleições para a Presidência da República no passado dia 24. O adiamento das eleições não foi considerado necessário a tempo, quando o quadro pandêmico estava mais brando. Pela Constituição, as restrições decretadas à luz do Estado de Emergência não poderiam inibir as campanhas eleitorais. Alguns candidatos revisaram suas agendas de campanha reduzindo ou até suspendendo as tradicionais campanhas de rua (corpo a corpo).

O atual Presidente, Marcelo Rebelo de Souza, disputava a reeleição com outros seis candidatos. No espectro político, é um candidato do centro-direita (PSD) que tem bom carisma e ocupava a preferência do eleitorado com larga folga nas sondagens de opinião: um estadista. Sua campanha foi mínima e a de menor orçamento entre todos.

O segundo lugar naquelas sondagens estava numa acirrada disputa entre uma candidata de centro-esquerda, Ana Gomes, filiada ao Partido Socialista (embora o partido do atual Primeiro-Ministro esteja de fato a apoiar Marcelo) e o candidato da extrema-direita André Ventura do partido Chega.

Os partidos de esquerda BE (Bloco de Esquerda) e PCP (Partido Comunista Português), identificados por André Ventura como trotskista e estalinista respectivamente, tiveram maus resultados nas eleições legislativas de novembro de 2019, com o fortalecimento do PS do Primeiro-Ministro. Em decorrência, a coalizão desses partidos com o PS, a dita “geringonça”, se desfez em virtude da maioria do PS que preferiu negociar caso a caso com o PSD à sua direita e livrar-se da incômoda coligação à esquerda. Naquelas eleições, o partido Chega, com poucos meses de existência, conseguiu eleger Ventura, seu presidente, como deputado da AR.

Ventura, um ex-professor e ex-comentador televisivo, tem um discurso francamente antissistema e antiesquerda, que gostaria de ver banida da política portuguesa. Egresso do PSD, no qual começou sua carreira política em 2017, defende uma Presidência para as pessoas de bem (a que se contrapõe Marcelo, com uma alegada Presidência para todos os portugueses). Ele acusa imigrantes e ciganos de se beneficiarem das benesses do Estado sem trabalhar.

Algumas medidas do programa de seu partido incluem a eliminação do cargo de primeiro-ministro, a castração química de pedófilos, a redução do número de deputados da AR para uma centena, a permissão da prisão perpétua, a criação de uma taxa única de Imposto sobre Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) e a extinção do Ministério da Educação. Recebeu a visita de Marie Le Pen que esteve em Lisboa em apoio à sua candidatura. Na campanha, não apresentou propostas de governança e deu preferência aos ataques diretos a seus adversários, os da esquerda preferencialmente. Nos debates televisivos com os outros, mostrou-se indisciplinado, fazendo interrupções constantes a seu interlocutor. O único candidato que o conteve e de certo modo o neutralizou foi Marcelo.

Ainda à direita, Thiago Mayan Gonçalves da Iniciativa Liberal, um estreante, fez uma campanha sóbria e foi dos poucos a concentrar esforços em oferecer propostas e discutir alternativas (neo) liberais. Segundo soube, também ele conseguiu algum sucesso no debate com Ventura. As campanhas da esquerda do BE e da candidata Ana Gomes (PS) perderam-se em contestar Ventura. O candidato do PCP, mais cuidadoso e proativo, buscou manter consolidada a base eleitoral de seu partido.

A abstenção às eleições portuguesas tem aumentado (o comparecimento às urnas não é obrigatório em Portugal). O governo, para não limitar o comparecimento às mesas de voto, o que contrariaria a Constituição, suspendeu o confinamento no dia 24. Na situação pandêmica em que se vive hoje, era de se esperar um crescimento ainda maior da abstenção pelo medo de contágios nas aglomerações no entorno das mesas de voto. O nível da abstenção no dia 24 poderia tornar ilegítimos os resultados e/ou implicar na necessidade de um segundo turno entre Marcelo e o segundo colocado, dado que muitos eleitores do incumbente Presidente poderiam abster-se por considerar garantida a sua vitória.

Encerradas as sessões eleitorais às 19 horas do dia 24, com uma abstenção de mais de 60%, os resultados finais já eram conhecidos à meia-noite com a vitória esperada de Marcelo Rebelo de Sousa no primeiro turno com mais de 60% dos votos. Em segundo e terceiro lugares estavam Ana Gomes (independente, 12,97%) e André Ventura (Chega, 11,9%). Os demais candidatos do PCP, BE, IL e RIR, nesta ordem, amargaram porcentagens menores que 5% e perderam, assim, o direito à maior parte da subvenção estatal às suas despesas de campanha.

Ana Gomes alcançou marginalmente seu objetivo de ultrapassar a votação do Chega. De resto, viu seu futuro político desvanecer-se em virtude do apoio a Marcelo dispensado por integrantes de seu partido, o PS.

O Chega, por seu turno, cresce com os resultados e, apesar de ser representado na AR apenas por Ventura, enfraquece o partido da direita, o PSD, já minado pelas eleições legislativas de 2019. Amealha, assim, parte das forças da direita nas disputas futuras. Ventura conseguiu ainda superar a votação total dos demais partidos à esquerda somada ao da dita ”direita caviar” da Iniciativa Liberal. Mais que isso, conquistou o segundo lugar em votos em todos os distritos do interior do país, inclusive em Portalegre, tradicional reduto de João Ferreira (PCP).

O sucesso da dobradinha entre o Primeiro-Ministro António Costa e Marcelo, que vigorou no primeiro mandato, quando houve muito pouco conflito em relação à maioria das questões e significativa estabilidade do governo, foi decisivo para os resultados das eleições. No entanto, deixa enfraquecido o flanco da direita que, na busca de uma maior distinção do PS, pode ceder à influência e atração do Chega. Com os resultados, a esquerda ao PS terá grandes dificuldades para equilibrar a balança e influenciar nas grandes decisões governamentais e neutralizar o avanço da extrema direita.

Por fim, vale notar que os poderes do Presidente da República em Portugal são bem mais limitados que os do cargo homólogo no Brasil. O Presidente aqui não faz parte do governo, cuja responsabilidade é exclusiva do Primeiro-Ministro. Ao Presidente cabe sancionar ou vetar leis aprovadas pela AR, representar o país nas relações internacionais e dissolver o governo, caso o partido com maior representação na AR não tenha maioria naquele parlamento ou não consiga coligações que garantam uma estabilidade governativa.

Fora isso, o Presidente não tem como impor direções à condução do governo, embora tenha influência política suficiente para intervir nas discussões de políticas governamentais. Espera-se que a Presidência seja um fator de estabilidade política e sua intervenção seja em busca desta. A larga votação de Marcelo deverá levar a que ele tenha um papel mais ativo na intervenção junto ao governo na busca de soluções a problemas imediatos como a gestão da pandemia e da crise socioeconômica decorrente.

Se a estirpe brasileira do SARS-CoV-2 ainda não chegou a Portugal, a disseminação do vírus político brasileiro da extrema direita alcançou aqui números inesperados.