Tem sido dias de muita tensão e ansiedade, mas finalmente a cidadania pode celebrar hoje o contundente triunfo do candidato de uma ampla coalizão de esquerda (Apruebo Dignidad). Gabriel Boric, com cerca de 56% dos votos, derrotou o representante da cultura pinochetista, o candidato de ultradireita José Antonio Kast.
Num segundo turno marcado pelo aumento de votos, se comparado aos resultados do primeiro turno (55% contra 47%, respectivamente), o povo do Chile logrou, não somente eleger o presidente mais jovem da sua história, como também, o presidente com a maior quantidade de votos da era republicana do país.
Os chilenos e especialmente os jovens se mobilizaram para deter o avanço da extrema direita que irrompeu no cenário político com uma campanha cheia de preconceitos e mentiras, tal como já se tinha visto em outros países.
Em contraposição a isso, a coalizão ganhadora se utilizou da criatividade de uma estratégia territorial e do trabalho articulado de milhares e milhares de voluntários que se mobilizaram para deter o ódio e fazer triunfar a esperança. Na noite da vitória, milhares de pessoas se deslocaram até o centro de Santiago e das principais cidades do país para celebrar o êxito de um projeto político e social que pretende realizar as transformações urgentes que o Chile requer para caminhar na direção de uma pátria justa e solidária, a qual aspiram as grandes maiorias do país.
Em parte, é a mesma população que aprovou, contundentemente, a elaboração de uma nova constituição e que em maio passado escolheu uma Assembleia Constituinte que representa os diversos grupos sociais, políticos, de gênero e etnias do Chile. A nova Constituição que deverá submeter-se a um novo plebiscito (e de saída), o qual já se pode perceber a campanha de desprestígio a que estão submetidos os grupos mais conservadores e retrógrados que desejam continuar com a Carta Magna maquiada, herança da ditadura cívico militar.
O presidente eleito Gabriel Boric já fez a diferença em seu compromisso de defender a Assembleia Constituinte pela qual ele mesmo lutou nas ruas, reunindo-se com os constituintes liderados por Elisa Loncón e Jaime Bassa, a dois dias do triunfo de sua coalisão. Em contraponto ao que fez Piñera e seu governo nos cinco meses e meio de Assembleia, criando obstáculos para seu funcionamento desde o primeiro dia de sua implantação e não promovendo, nem outorgando as condições mais básicas e práticas para sua instalação e funcionamento. O prolongado abraço entre Boric e Loncón foi a imagem que marcou o dia do encontro, e que se caracterizou pela construtiva vontade de um trabalho conjunto em prol do êxito da Constituinte.
A direita tratou de instalar nos meios de comunicação e nas conversas cotidianas a ideia de que a sociedade chilena estava polarizada, mas na realidade o único polo que existe até o momento é a ultradireita, pois as forças novas que apoiaram Boric não representam um polo da ultraesquerda, nem nada desse espectro. É um projeto que deseja implantar melhores políticas públicas e sociais, mais inclusivas e mais universais.
Por certo, os desafios que deverá enfrentar o novo governo são enormes e, indubitavelmente, vão surgir muitos detratores, obstáculos e empecilhos por parte dos setores empresariais que temem perder seus privilégios. Por suposto, também virá a intimidação de uma direita ideologicamente rígida ligada ao legado pinochetista.
As mudanças anunciadas pelo futuro presidente para ampliar a gratuidade na educação, expandir o sistema público de saúde tornando-o mais universal, transformar o sistema de aposentadoria e pensão em um modelo de participação solidária e realizar a reforma tributária, aumentando o imposto das megaempresas (mineradoras, florestais e agrícolas) e das grandes fortunas para financiar essas mudanças, são algumas das principais matérias sobre as quais não existe um consenso nacional. E serão debatidas em um Congresso Nacional bastante equilibrado ou “empatado”, onde possui uma representação significativa da direita e da extrema direita.
Estas são algumas das tarefas pendentes que têm deixado sucessivos governos desde a democratização do país, e especialmente da própria Concertação, com problemas na “correlação de forças” para empreender as mudanças que a sociedade reclamava com urgência.
Mas Gabriel Boric tem ido mais além em suas propostas de mudança, com um plano que reflete muitas das demandas emanadas da explosão social de outubro de 2019. Episódio em que milhares e milhares de chilenos foram às ruas exigindo não somente o fim do modelo neoliberal imperante, como também profundas transformações em temas como previdência, zonas de controle ambiental, conflito em Araucanía, entre muitos outros.
Uma nova oportunidade para a região?
A chegada da coalizão progressista como Apruebo Dignidad com Gabriel Boric na liderança representa também uma oportunidade para retomar os processos de integração regional a partir de uma estratégia de cunho progressista, superando o império exclusivo dos intercâmbios mercantis entre as nações do subcontinente. Temas como a crise migratória e a abertura de fronteiras com respeito aos direitos das pessoas, a abolição da desigualdade de gênero, o problema do narcotráfico e o comércio de armas se somam aos desafios para mitigar e reverter as mudanças climáticas e a destruição dos ecossistemas.
O enfrentamento à pobreza e à exclusão, as respostas à pandemia e a outras enfermidades catastróficas, o combate a grupos paramilitares de extrema direita e às milícias urbanas, todos esses temas devem ter necessariamente uma articulação hemisférica de longo prazo. De forma que superem os acordos conjunturais, seguindo a orientação e conveniência de governos específicos, para transformarem-se em políticas permanentes dos Estados que subscrevem os respectivos acordos de cooperação e ajuda mútua.
Para Boric, “a justiça ambiental é também justiça social”, e ainda considera que a sustentabilidade, a participação cidadã e a defesa ambiental vão de mãos dadas com o desenvolvimento do país.
Em seu primeiro discurso como presidente eleito, fez referência direta às zonas de sacrifício declarando um rotundo “No a Dominga”, um dos projetos mais controversos da mineração de ferro do Chile. Meses antes das eleições, prometeu que em um eventual governo liderado por ele ratificaria e firmaria, durante os dois primeiros meses de mandato, o primeiro acordo regional ambiental da América Latina e Caribe. Mais conhecido como acordo de Escazú, o acordo foi assinado pela maioria dos países da região em 2018 e vincula, entre outros temas, direitos humanos e meio ambiente.
Provavelmente o novo presidente tentará reposicionar o Chile dentro do novo ciclo progressista, estimulando a reconfiguração de acordos de integração regionais com essa marca e fortalecendo o discurso crítico às políticas neoliberais que provocou o empobrecimento e a exclusão de vastos setores na América do Sul. Também promoverá alternativas com maior ênfase em um desenvolvimento baseado no bem estar das pessoas e não apenas no mero crescimento do PIB, como tem sido a realidade até o momento.
Por outra lado, com a derrota do neofascista Kast, o projeto retrógrado do bolsonarismo perde força na América Latina. Surgiu um “efeito demonstração” virtuoso que poderá inaugurar um novo ciclo de governos progressistas preocupados com o futuro dos seus povos e não com a imposição de políticas ultraliberais e depredadoras do ambiente sustentadas por regimes com vocação autoritária e regressivos no âmbito moral, educacional e cultural. Oxalá que esta vitória das forças democráticas de esquerda no Chile seja a consolidação de um novo ciclo de transformações para América Latina.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli Tradução: André Amaral
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