Quem já viveu ou esteve em Santiago por alguns dias, já deve ter sentido em algum momento que o chão ou as paredes estavam se movendo, em especial em edifícios altos. Isto se deve ao fato que o Chile, como os demais países banhados pelo Pacífico, está no chamado “Círculo de Fogo”, com ampla atividade vulcânica e de placas tectônicas. Pequenos tremores são parte do cotidiano dos chilenos, o que é amplificado nos prédios mais altos, que têm alicerces preparados para mover-se junto com as perturbações sísmicas, absorvendo a energia e evitando rupturas. Mas de tempos em tempos pode ocorrer um terremoto de maior magnitude, como o ocorrido em Valdívia em 1960.

A política chilena, de alguma forma, emula sua condição geológica. Ao longo do século XX os governos dominados pela Democracia Cristã combinaram o conservadorismo com regimes relativamente democráticos, garantindo uma estabilidade invejável para a maioria dos demais países do continente.

Esta normalidade escondia movimentos tectônicos na sociedade chilena, com uma riqueza oriunda de fontes naturais, especialmente o cobre, sendo mal distribuída entre a população, o que era agravado por uma discriminação histórica com a população das etnias pré-colombianas, como os Mapuches.

A eleição de Salvador Allende se constituiu em um abalo de magnitude média, se considerarmos a via democrática, mas de impacto profundo, dada a conjuntura internacional. Allende estava longe de ser um neófito na política, sendo a de 1970 a sua quarta candidatura à Presidência, tendo sido derrotado em 1952, 1958 e 1964. Porém, a vitória do Partido Socialista, com o apoio dos comunistas, passou a ter um novo significado depois da Revolução Cubana e dos golpes de estado em países vizinhos.

Em outras partes do mundo a Guerra Fria vivia seu momento de distensão e convivência pacífica, com o reconhecimento pelos Estados Unidos do governo da República Popular da China e a abertura de diálogo com a União Soviética no controle da corrida armamentista, que resultou no Tratando de Não Proliferação de Armas Nucleares, de 1968 e no SALT I em 1972. Porém, na América Latina a política era outra, com o apoio aos golpes militares, sob a égide da Doutrina da Segurança Nacional. Os EUA não estavam dispostos a tolerar uma via democrática para o socialismo dentro do que consideram sua área de influência geopolítica (ou dito de forma mais direta, “seu quintal”).

Assim, o terremoto da eleição de Allende provocou um tsunami de reação conservadora, reforçado pelos ventos do Governo Nixon e das ações clandestinas da CIA de sabotagem ao governo, que acabaram redundando no golpe de 11 de setembro de 1973, levando ao poder um traidor da Constituição Chilena, o general Pinochet, que poucas semanas antes havia prometido defendê-la, ao tornar-se Chefe das Forças Armadas. Como num tsunami real, após o golpe os mortos podiam ser contados aos milhares. A então democracia chilena foi varrida e soterrada por mais de uma década de autoritarismo.

O retorno à democracia em 1990 não alterou radicalmente a superfície política resultante dos anos de ditadura. A nova Constituição de 1980, aprovada durante o governo de Pinochet, foi mantida. Assim como foi mantida a política de Estado Mínimo, criada pelas reformas neoliberais dos “Chicago Boys”, de que o Chile foi um dos primeiros laboratórios no mundo.

Os antigos adversários Partido Socialista e Partido Democrata Cristão se juntaram em uma aliança de centro esquerda, a Concertación, que governou o país de 1990 a 2010. O período favorável para uma economia baseada na exportação de commodities garantiu o crescimento econômico e a estabilidade fiscal, aliada a estabilidade política, fazendo do Chile o exemplo a ser seguido no continente, na visão do Consenso de Washington. No índice de desenvolvimento democrático da América Latina (IDD-LAT), da Fundação Konrad Adenauer, o Chile sempre esteve no ponto mais alto da escala. Porém, nas profundezas da sociedade chilena, as placas tectônicas da exclusão social e da desigualdade continuaram a provocar atrito.

Seja nos governos da Concertación, seja nos governos do conservador Sebastián Piñera, tanto o modelo econômico da ditadura como características repressivas de seu sistema policial foram pouco alterados. Como no Brasil, ocorreram limitações na investigação de crimes do passado autoritário, com o general Pinochet e seu regime permanecendo populares para uma parcela da população (lembrando que 44% votou a favor de sua permanência no plebiscito de 1988). O próprio encerramento da carreira política do general como Senador Vitalício foi provocado pela sua estratégia de alegar senilidade para fugir a um mandado de extradição para a Espanha, depois de ser preso em Londres em 1998 e não por uma decisão do sistema democrático.

A gravidade do impacto do modelo de estado pinochetista e neoliberal demorou alguns anos para ser percebida, mostrando aos poucos sua face mais dura para dois setores da sociedade: os mais jovens e os mais velhos, em especial na última década, associada ao fim de ciclo de crescimento resultante da crise de 2008,

O modelo privado de pensões, de capitalização administrado pelo sistema financeiro, tem mostrado sua ineficácia, com grande parte da população recebendo aposentadorias insuficientes para manter as condições mínimas de vida digna (o mesmo que Paulo Guedes queria impor na sua reforma da Previdência no Brasil).

Para os jovens, o acesso à saúde e à educação depende das condições financeiras das famílias, com serviços de alta qualidade em escolas, universidades e hospitais disponíveis para uma pequena minoria, com custos que excluem a maioria da população.

A crítica a este modelo se tornou pública em 2006, quando a Revolución de los Pingüinos mostrou a insatisfação dos estudantes secundaristas com o modelo educacional excludente. A ocupação de escolas e os violentos enfrentamentos com a polícia contribuíram para erodir o apoio à Concertación, com a incapacidade do governo Bachelet realizar as reformas exigidas. Embora os pingüinos não tenham obtido total sucesso em suas reivindicações, fazem parte do surgimento de uma nova geração de lideranças, hoje presentes no movimento estudantil universitário, nos partidos políticos e no Congresso chileno.

O fim do sucesso do modelo de coalizão centrista ficou claro na eleição presidencial de 2017, com Partido Socialista e Democracia Cristã se apresentando com candidaturas separadas. A eleição foi decidida entre Piñera, representando a direita tradicional, e Alejandro Guiller, por uma aliança de partidos de esquerda, incluindo o Partido Radical Social Democrata, o Partido Socialista e o Partido Comunista, com a vitória de Piñera no segundo turno por 54% contra 45% dos votos. O Chile volta a uma conjuntura de polarização política.

Essa juventude mobilizou-se contra os aumentos no metro de Santiago em outubro de 2019. A violenta repressão das forças policiais fez com que os protestos se espalhassem pelo país, tanto em solidariedade aos estudantes como pelo descontentamento da situação econômica. Foi imposto o toque de recolher em várias partes do país e os enfrentamentos geraram mais de uma dezena de mortos, indicando que os métodos dos Carabineiros mudaram pouco desde o fim da ditadura. Espelhando os protestos ocorridos no Brasil em 2013, o debate dos custos do transporte foi o estopim para trazer à tona o mal-estar com a situação social do país.

É neste cenário de choques nas bases da sociedade chilena que, para evitar um novo terremoto político, a saída negociada entre o governo de Piñera e a oposição – em um documento aprovado pelos partidos no Congresso denominado Acuerdo Por la Paz Social y la Nueva Constitución – foi a convocação de um plebiscito para decidir sobre a realização de uma Assembleia Constituinte que redija um novo texto para substituir a Constituição de 1980. E, caso aprovada a sua convocação, se esta será uma assembleia composta por delegados eleitos e por atuais congressistas, ou deveria haver uma assembleia exclusiva.

O plebiscito deveria ter sido realizado em abril de 2020 e foi remarcado para 25 de outubro de 2020 devido à pandemia de Covid-19.

Mantida a metáfora geológica, a convocação do plebiscito foi uma emanação de cinzas e gases de um vulcão, o que indica a existência de atividade sísmica e temporariamente reduz a pressão, mas, ao mesmo tempo, sinaliza que uma erupção pode estar próxima. O plebiscito cria a esperança de reformas, mas não define quais serão realizadas. A aprovação de uma Constituição que não enfrente os problemas estruturais de desigualdade do Chile pode ser apenas o prefácio para uma nova onda de protestos.

As pesquisas de intenção de voto para o plebiscito indicam que a aprovação da realização da Assembleia Constituinte será facilmente aprovada por mais de dois terços dos votos. É provável que a proposta de Assembleia Exclusiva, eleita apenas para redigir a nova Constituição, vença, ainda que por uma maioria inferior com relação à proposta da Constituinte mista.

Mas este não será o fim e nem ao menos o princípio do fim dos problemas dos chilenos. A demora para reformar a constituição da ditadura não se deve a que ela foi aceita como um consenso sobre o modelo de sociedade e de Estado a seguir, mas justamente pela impossibilidade de entrar em acordo sobre o que deveria ser mudado.

O Chile enfrentará a elaboração de uma Constituição tendo de construir um acordo sobre o que deseja para o futuro em termos de modelo econômico e social, em um momento de polarização e acirramento das divergências. Será um período rico de debate democrático e deve ser louvado e comemorado que um país em nosso continente está propondo discutir suas divergências e as reformas necessárias por meios democráticos e não as realizando por golpes de Estado, como na Bolívia ou afastamento de presidentes com subterfúgios legais para mudar as políticas dominantes, como no Brasil.

Não será tarefa fácil. No ano em que se comemoram os 50 anos da eleição da Unidad Popular, que representou a esperança de reformas pela via democrática, que o Chile possa ser o exemplo de que el pueblo unido jamás será vencido!

Veja aqui no Terapia Politica o excelente documentário de Aldo Quiroga: Como o Céu é do Condor.