Quando Alfred Romann publicou no China Daily o artigo “China offers trade anchor for Latin American countries” (25/09/2025), ele sintetizou em uma frase o movimento que percorre o continente: a China se converteu na “âncora de comércio” da América Latina quando os Estados Unidos reacenderam o protecionismo. A ideia de Romann é que Pequim oferece previsibilidade e demanda estável, enquanto Washington injeta volatilidade com tarifas, sanções e ameaças. Mas o fenômeno é mais amplo e complexo — e merece uma análise que vá além do entusiasmo pró-China de um jornal oficial.
O retorno do “tarifaço” de Trump
A história começa em janeiro de 2025, quando Donald Trump reassumiu a Casa Branca e, poucos meses depois, decretou as “Tarifas do Dia da Libertação” por meio da Ordem Executiva 14257. Tratava-se de um pacote inédito: uma tarifa-base de 10% para a maior parte das importações, acrescida de sobretaxas de até 50% para países com “déficits comerciais excessivos” ou em descompasso político com Washington. Trump havia descoberto um novo uso para tarifas – transformá-las em instrumentos de política externa e de pressão política, mais do que em mecanismos de correção de balança comercial.
O resultado foi imediato: cadeias globais foram abaladas, exportadores latino-americanos perderam previsibilidade e o preço de produtos básicos nos EUA subiu. Só em agosto, as exportações brasileiras para os Estados Unidos recuaram 18,5%, caindo para cerca de US$ 4 bilhões, enquanto novos anúncios de tarifas sobre caminhões, móveis e medicamentos reforçaram a percepção de que a relação comercial com Washington entrou em terreno instável. O Brasil figura entre os países que foram mais punidos pelo tarifaço (+50%) embora tivesse um superávit comercial com os EUA.
Trump já sinalizou novas rodadas de tarifas para 2026, o que aprofunda a incerteza para países cuja estratégia de crescimento ainda depende do mercado americano.
A virada para a China: dados e casos
É nesse vácuo que entra o argumento de Alfred Romann: em vez de ficarem reféns do humor tarifário da Casa Branca, exportadores latino-americanos têm buscado na China um porto seguro. E os números são eloquentes.
- Brasil — No primeiro trimestre de 2025, o país enviou 16,9 milhões de toneladas de soja para a China, equivalentes a 76% de todas as exportações do grão. Em agosto, enquanto as vendas aos EUA caíam, as exportações para a China saltaram quase 30%, atingindo US$ 7,3 bilhões. Mesmo sem um acordo de livre comércio formal, tarifas baixas e protocolos sanitários estáveis garantem fluxo contínuo.
- Argentina — Com um superávit de quase US$ 19 bilhões em 2024, a Argentina também viu na China uma válvula de escape, especialmente para soja, óleo e farelo. Dados do Instituto Nacional de Estadística y Censos da Argentina (INDEC) mostram que Pequim já responde por mais de 20% das importações argentinas e por uma fatia crescente das exportações. A soja é peça central da estratégia de Milei para trazer dólares para a Argentina já que o país é o maior exportador mundial de farelo e óleo de soja, sendo a China seu principal comprador.
- Uruguai — Pequim foi o maior destino das exportações uruguaias em 2024, absorvendo 24% do total. Só a carne bovina gerou US$ 2,1 bilhões em receitas, sustentando cerca de 10% do PIB e mais de 90 mil empregos, segundo o Instituto Nacional de Carnes.
- Chile — Caso paradigmático de diplomacia tarifária: o Acordo de Livre Comércio Chile-China (2006, atualizado em 2019) eliminou tarifas sobre 98% das linhas de produtos. Resultado: a China passou a comprar 90% das cerejas chilenas, que renderam US$ 2,4 bilhões na última temporada, transformando um produto antes de nicho em motor de crescimento agrícola.
- Equador e Costa Rica — Mais recentemente, ambos firmaram acordos de livre comércio com a China, garantindo acesso preferencial para centenas de produtos e abrindo espaço para diversificação das exportações.
Esse conjunto de casos mostra que, longe de ser um fenômeno isolado, trata-se de uma reconfiguração de fluxos comerciais regionais. Não é “abandono” dos EUA por convicção ideológica, mas sim reação pragmática a um ambiente hostil.
O que sustenta a “âncora” chinesa
A estratégia de Pequim na América Latina é deliberada. A redução de tarifas, a assinatura de acordos de livre comércio, a previsibilidade regulatória e até mesmo a diplomacia sanitária são pilares que viabilizam o crescimento do comércio. Soma-se a isso a capacidade de absorver grandes volumes de commodities e o interesse chinês em garantir segurança alimentar e energética.
Há também a questão de inovações via swaps cambiais. Em 12 de maio de 2025, o Banco Central do Brasil (BCB) anunciou que firmaria um acordo de swap cambial com o People’s Bank of China (PBOC), no valor máximo de R$ 157 bilhões, com vigência de cinco anos (Reuters ). O memorando de entendimento (MOU) foi efetivamente assinado no dia 13 de maio, durante a visita do governador do BCB a Pequim. Esse swap permite que o Brasil acesse liquidez em yuan ou, indiretamente, reduza a dependência do dólar em momentos de estresse externo, funcionando como um colchão financeiro bilateral.
Além disso, o acordo faz parte de um escopo maior de cooperação financeira entre os dois países: ele foi firmado junto a um MOU mais amplo de cooperação estratégica em finanças (infraestrutura, pagamentos locais, troca técnica) entre o PBOC e o BCB.
O mecanismo de swap cambial ou linhas de troca de moeda já existe ou foi renovado em alguns países latino-americanos, em parceria com a China:
- Argentina: mantém uma linha de swap cambial de longo prazo com a China. Em 2024, uma parte ativada do swap foi renovada até julho de 2026, no valor de US$ 5 bilhões, estendendo a capacidade de liquidez da Argentina em yuan (Reuters+2).
- Esse swap argentino, porém, vinha sendo alvo de críticas e tensões políticas, inclusive com os EUA pressionando para que fosse reduzido.
- Outros países: embora menos divulgados, há indicações de que países como Equador e Uruguai negociam acordos que incluam cláusulas de swap ou mecanismos de liquidação em moedas locais à luz de acordos de livre comércio com a China.
- Também se observa que Argentina, Brasil e Bolívia já podem liquidar parte de seu comércio em yuan, o que sugere arranjos de moeda ou swaps embutidos em seus acordos econômicos com a China.
Esses casos reforçam que o Brasil não é exceção, mas sim parte de uma tendência mais ampla de uso de swaps e mecanismos bilaterais de moeda para reduzir exposição ao dólar, especialmente diante de um ambiente global marcado por incertezas.
O papel da Belt and Road Initiative (BRI)
Outro elemento estratégico é a integração latino-americana à Belt and Road Initiative (BRI), lançada pela China em 2013 como sua grande plataforma de conectividade global. Desde 2017, mais de 20 países da região aderiram formalmente à iniciativa — incluindo Chile, Peru, Argentina, Uruguai e, mais recentemente, o Brasil, como observador em fóruns de infraestrutura e finanças verdes.
A BRI (em português, Iniciativa Cinturão e Rota) vai além de corredores físicos: ela inclui investimentos em portos, ferrovias, telecomunicações e digitalização aduaneira, todos voltados para reduzir custos logísticos e acelerar o fluxo de mercadorias. Ao integrar a América Latina a uma rede global de comércio e financiamento, a BRI deve ampliar ainda mais a previsibilidade e a capacidade de planejamento dos exportadores, reforçando o papel de Pequim como “âncora de comércio” para a região. Essa infraestrutura de longo prazo pode tornar a dependência de tarifas e sanções americanas cada vez menos determinante para as escolhas estratégicas dos países latino-americanos.
Investimentos chineses na América Latina
Os investimentos chineses na América Latina continuam a desempenhar papel central na transformação econômica da região. Segundo o Regional Repository of Chinese Investments in Latin America, já são mais de US$ 132 bilhões confirmados em oito países, concentrados em energia, mineração, logística e infraestrutura. Projetos emblemáticos, como o porto de Chancay no Peru — que será o primeiro hub logístico chinês na costa do Pacífico sul-americano — e os novos parques eólicos e solares da SPIC no Nordeste brasileiro exemplificam como a China vem combinando comércio e investimento para consolidar cadeias de suprimento e reduzir custos. Em 2024, o comércio bilateral já superou a meta de US$ 500 bilhões originalmente fixada para 2025, alcançando US$ 515 bilhões e sinalizando que o BRI não é apenas uma iniciativa retórica, mas um motor efetivo de integração física e financeira entre a Ásia e a América Latina.
Nesse contexto, o novo “tarifaço” de Trump soa como reação defensiva: em vez de disputar mercados com mais cooperação e inovação, Washington volta a usar tarifas e sanções, aprofundando a percepção de que perdeu espaço no “quintal” que historicamente considerava seu.
Limites e riscos
Mas há limites. O crédito estatal chinês para a região é hoje muito menor do que no auge de 2015–2018, o que significa que o “cheque em branco” desapareceu — os projetos são mais seletivos e demandam contrapartidas. Há também o risco de dependência excessiva: concentrar a pauta exportadora em um só cliente deixa os países vulneráveis a choques de demanda ou mudanças na política chinesa.
Além disso, para economias industriais fortemente integradas às cadeias de valor norte-americanas, como o México e parte da América Central, a substituição de mercado é limitada: a China não consegue absorver facilmente manufaturas, autopeças ou eletrônicos na mesma escala. Por isso, o papel de “âncora” é parcial e setorial.
Implicações estratégicas para a região
A guinada para a China revela mais do que uma preferência comercial. É um sinal de que a América Latina está sendo empurrada a repensar sua inserção internacional. O desafio é evitar a armadilha da dependência — seja de Washington, seja de Pequim — e construir estratégias de diversificação de parceiros.
Há espaço para uma diplomacia comercial mais autônoma, que aproveite o poder de barganha que a situação atual confere. A região pode, por exemplo, avançar em integração intrarregional, fortalecer cadeias de valor latino-americanas e negociar com múltiplos polos, aproveitando a rivalidade EUA–China a seu favor.
Âncora, não tábua de salvação
A China cumpre hoje o papel de amortecedor do tarifaço de Trump, oferecendo previsibilidade num cenário de incerteza. Mas é um erro ver Pequim como “tábua de salvação” universal: seu papel é de âncora — estabiliza, mas não substitui. Para a América Latina, o desafio é transformar essa âncora em plataforma de desenvolvimento de longo prazo, usando o espaço criado pela crise do comércio com os EUA para diversificar mercados e fortalecer sua própria capacidade produtiva.
A narrativa do China Daily acerta ao identificar a tendência, mas um olhar mais crítico mostra que o jogo é de interdependência complexa, não de substituição pura e simples. O futuro dependerá da habilidade dos países latino-americanos de navegar entre as marés do protecionismo americano e da demanda chinesa, preservando soberania e construindo estratégias de crescimento sustentáveis.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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