Vejo uma movimentação no horizonte político que é capaz de balançar as previsões políticas mais apressadas. Ciro quer se aproximar de setores da direita e, parece, setores da direita querem se aproximar de Ciro.

Sob certos aspectos é um filme que já vimos, com PSDB e FHC na década de 90, que à época interpretavam o mesmo papel que Ciro tenta reeditar. O PSDB era a “centro-esquerda” com histórico democrático, cheio de ex-perseguidos do regime militar, que se aliou a uma direita “renovada” para afastar tanto a direita dita “fisiológica, corrupta e atrasada” quanto a esquerda representada principalmente pelo PT, tida como “radical”.

O artigo tem aspas porque busco entender e interpretar um discurso (no passado e no presente). Por honestidade, não tenho como prever o futuro que o discurso ainda incipiente do presente almeja construir, nem os atores envolvidos podem prever.

Mas o passado pode ser lido. A tal “centro-esquerda” tinha se convertido de corpo e alma ao neoliberalismo, sequestrada pela força econômica de uma São Paulo não mais industrial, mas financeira, e que a direita “renovada” não era tão moderna assim. O sonho de Sergio Motta de mais de 20 anos no poder logo se desfez em meio a erros políticos e econômicos crassos.

Levada pelo fanatismo econômico liberalizante, a direita (com o PSDB já nela inserido) insistiu na ideologia em detrimento dos fatos e pagou o preço cobrado pelos milhões de silenciosos atores introduzidos, na década de 80, na democracia eleitoral de massas.

Perdeu a eleição de 2002 para o PT, a esquerda “radical”. Mas essa esquerda “radical” fez movimentos importantes e teve inegável êxito político. O PT venceu quatro eleições, três com 60% dos votos, porque “roubou” o centro e realizou políticas sociais inegavelmente exitosas e essenciais, ainda que muitos, como Andre Singer, as classifiquem como um “reformismo fraco”.

Sem dúvida o PT não fez a disputa política na sociedade, se autocensurou, se acomodou, talvez com medo de ser qualificado de “chavista”, mais uma palavra sem significado que o discurso da direita consegue impor ao debate político, como “populismo”, usada contra tudo que contrarie seus interesses. O PT e Lula tinham verdadeiro pavor estético de serem comparados a Chaves e não podemos esquecer que muitos na esquerda, principalmente na década de 80, criticavam Brizola por ser “populista”.

Contudo, sem discordar de Singer e de outros críticos mais à esquerda, penso que se menospreza nessa equação os vetos à direita, que sempre teve ampla maioria no Parlamento.

José Sarney e Renan Calheiros exerceram com maestria controle no senado aos impulsos “esquerdizantes”, como porta-vozes dos interesses do capital, ao mesmo tempo em que garantiam estabilidade ao “regime”, segurando os radicais do lado de lá. A Câmara seguia a mesma lógica, ainda que sem líderes incontestes.

A morte de José Alencar, outra inegável fonte de estabilidade, e a ascensão de Michel Temer e Eduardo Cunha, como novos avalistas, enfraqueceram o “regime”. Dilma tem toda razão quando diz, olhando para trás, que a situação mudou quando o “centro” (que com Renan e Sarney fazia o duplo veto) foi para a direita e colocou o poder Executivo em eterno conflito com o capital e o Congresso, sem esquecer, ainda, a reação religiosa conservadora.

A direita se radicalizava e a esquerda, acuada e atacada por todos os lados, se limitou a tentar ganhar eleições, menos que defender sua visão de mundo. Claro que esse movimento não ocorreu de uma hora para outra e o PSDB teve inegável papel ao assimilar a radicalização conservadora. Nem vou falar da mídia, muitos outros já escreveram.

Alguns estabeleceram, Luis Nassif, principalmente, que a campanha de Serra em 2010 ultrapassou o limite. No desespero, o maleável e invertebrado político de longa estrada não se furtou em abraçar o fanatismo religioso de direita.

Sem discurso para enfrentar as moderadas, mas eficientes, políticas sociais petistas, o PSDB embarcou de corpo e alma no navio da extrema direita e da desestabilização, acreditando que seria ele no leme quando a nau chegasse à praia. O resultado foi o que vimos.

E o resultado foi previsto por muitos e não só na esquerda, mas a direita chamada “tradicional” continua presa ao fanatismo econômico, que só radicalizou pelos anos fora do poder e que a faz manter o apoio a Bolsonaro.

Mas quem tem um mínimo de percepção na direita deve ter notado que a política econômica de Temer e Bolsonaro é insustentável, que sua manutenção trará a esquerda de volta ao poder, talvez já em 2022. Já são quatro anos de insucessos, ocultados pela radicalização política, instrumentalizada, mas que dá sinais de arrefecimento.

Acredito que, sim, há vida inteligente na direita brasileira, pouca, mas há. E parece que certos setores entenderam que há necessidade de se libertar, ao menos no discurso, do radicalismo suicida do “mercado”, do qual Dória e a máquina do PSDB paulista (um verdadeiro PRI mexicano em nossas terras), gigante e de difícil manobra, se tornou refém.

Nesse teatro é que Ciro deseja atuar, como ator principal. Ciro não tem o temperamento de FHC, para o bem e para o mal, não tem um partido com a organicidade que tinha o PSDB junto à classe média, está longe de ser o “cavalo premiado” que FHC foi para a elite econômica, mas os tempos também são outros. FHC não era acossado por uma extrema direita com alto potencial de votos, ao mesmo tempo em que não dá mais para falar em “caos” se a esquerda voltar ao poder. Cada vez mais o discurso de culpar Dilma e o PT pela crise econômica deve se enfraquecer, os resultados não aparecem e não há sinais de que 2021 será diferente.

Sim, Rodrigo Maia é avalista do “mercado”, representa seus interesses, inegavelmente, mas também está dando constantes cutucadas no discurso neoliberal. Convicções fanáticas permanecem firmes, mas os resultados continuam pífios e socialmente trágicos. Quem vai morrer afogado junto ou querer permanecer refém do ódio e da ignorância?

O discurso que está sendo construído não é o de que Ciro vai ao encontro da direita, mas o contrário, diferente do que foi FHC. Não enxergo Maia e outros atores apenas atraindo Ciro para venderem o passe mais caro ao PSDB. Pode ocorrer isso, no fim, mas acredito no desejo desses atores de buscar algo diferente, mais ampliado, para sufocar Dória e o PSDB, encurralar a extrema direita e isolar a esquerda.

Maia não tem carisma e nem voto, mas não é burro. Um cenário previsível, com os atores políticos nos mesmos lugares em que estão, tende, pelas nuvens de hoje, a levar os mesmos de 2018 ao segundo turno em 2022.

Também enxergo nessa costura ACM Neto, que vem forte para governador da Bahia em 2022, e Alexandre Khalil, que hoje é a liderança política mais viável eleitoralmente em MG e que nunca fez questão de esconder sua simpatia voluntarista e apartidária por Ciro, pois, no fundo, se parecem nesses aspectos.

Essa conjugação política nasceria com força, portanto, em Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro (com apoio de Eduardo Paes), o que não é pouco. Com Marina, cresceria em legitimidade.

Antes de perderem novamente para uma esquerda (não sei qual), talvez mais legitimada, mais forte e provavelmente unificada, é possível que parte da direita busque um caminho diferente. Perfeitamente defensável, sob esse ângulo, um diagnóstico que vê em Dória a mesma linha política que perdeu quatro eleições consecutivas, de fanáticos mercadistas que não conseguem mostrar resultados satisfatórios nem sob o ponto de vista contábil, e que Bolsonaro significa manter no poder milícias, desmatadores, militares presos à guerra-fria, fanáticos religiosos, odiadores da cultura e uma política externa conspiratória que marginaliza e apequena o Brasil.

Ciro acredita nisso, penso, parece que tem apoiadores à direita com o mesmo diagnóstico e está se colocando para ser o polo aglutinador dessa reação civilizatória controlada. Está, inclusive, fazendo o jogo para se legitimar, mantendo o PT distante, com forte discurso moralista. Mas isso é política, quem reclama de jogo bruto e desleal deve ficar longe da política.

Acredito que muitos nas esquerdas partidárias também enxergam essa possibilidade, mas não falam, por razões eleitorais, porque se der certo pode ser um polo eleitoralmente forte. Tudo ainda está no campo da especulação, há bons argumentos para desacreditar essa possibilidade, mas essa pode ser uma realidade e um desafio que a esquerda terá que enfrentar e é bom se preparar para ela, para não ser surpreendida.